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Crítica


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Sinopse

Dois amigos trabalham como mecânicos numa oficina, enquanto um colega passa o dia distribuindo currículos pela cidade. À noite, uma batida policial transforma a vida deles para sempre.

Crítica

Os diretores Rodrigo Beetz e Wesley Figueiredo possuem uma maneira muito particular de filmar a violência. 23 Minutos (2020) se dedica à representação de um sistema opressor. Entretanto, as imagens transmitem um olhar contemplativo, além do cuidado extremo em respeitar as dores dos protagonistas. Diante de um cadáver no chão, a câmera revela apenas o braço esticado com um currículo ao lado. Durante a batida policial, o enquadramento teria espaço de sobra para incluir os policiais, porém a imagem se mantém fixa no sujeito abordado e no cano do revólver invadindo a beira do quadro. Sentado no banco de uma praça, Bryan se torna alvo de olhares de desdém por parte de um grupo ao lado. Para os autores, a agressão dirigida a moradores de uma periferia em Minas Gerais vai além de seu caráter explícito - a fatalidade em via pública. A segregação ocorre no dia a dia, desde que o sujeito cansado se levanta da cama pela manhã. Ao invés de observar o caso pelo prisma policialesco, a dupla oferece um olhar de empatia, atento aos detalhes e afetos. Esta não é apenas uma história de injustiça, e sim uma crônica sobre lutas e a busca por saídas. Há tanta pulsão de vida quanto de morte no curta-metragem.

A trama se foca num único dia na vida de três jovens: Nik, Def e Bryan. Os dois primeiros possuem emprego fixo numa oficina mecânica, enquanto o terceiro procura uma colocação. A diferença entre estes mundos ocorre por vias estéticas: a rotina com os carros e motores soa pacífica, estável, algo traduzido em planos fixos e bem compostos, com luzes pouco agressivas - algo notável para o ambiente de um galpão. O filme opera com uma janela extremamente retangular, ainda mais estreita do que o scope convencional. Assim, valoriza os espaços, a profundidade de campo e as interações entre personagens - vide a conversa entre os três amigos, enquadrados no mesmo plano. Em contrapartida, o mundo lá fora se torna incerto: as bordas do quadro são borradas, a profundidade de campo se reduz drasticamente, o sol brilha com intensidade. No espaço externo, a câmera se torna fluida e móvel, e depois do encontro entre os colegas, a oficina mecânica também adquire planos soltos, próximos da intimidade destes mecânicos com apreço pelo rap. No início, a câmera flagra a rotina dos trabalhadores à distância, com distanciamento. Depois, se junta a eles, descobrindo seus versos e sonhos. O filme mergulha aos poucos na subjetividade destes jovens.

O tom preserva a melancolia, inclusive quando um homem é injustamente acusado de um crime, e outro corre pelas ruas, assustado com a ameaça policial. A delicadeza dos realizadores impede de transformar a morte em espetáculo: a montagem suprime o momento fundamental. Caberá ao espectador apelar ao seu imaginário de homicídios praticados contra jovens negros nas periferias - em outras palavras, o recurso torna este episódio semelhante a tantos outros, ao contrário de uma história especial. Beetz e Figueiredo observam as ações com pesar, porém sem conformismo. Ao invés de dedicarem a narrativa a lamentar uma nova injustiça, pensam na melhor forma de combater o problema. Nik e Def concluem que precisam voltar à música, recorrendo à ideia de que a arte seria necessária para expressarem sua raiva e imortalizarem a vida perdida. “Não ouviram nem a metade do que eu tô sentindo”, afirma a letra da canção final. Já os diretores se fazem ouvir através do cinema. Teria sido fácil instrumentalizar o caso, listar dados sobre homicídios, mostrar pessoas chorando - ou seja, apelar à racionalização ou ao sentimentalismo. Os autores fogem à armadilha do olhar externo e moralista, colando-se à vivência dos dois amigos.

Para além do humanismo, 23 Minutos impressiona pelo cuidado estético. A linguagem de urgência, tremida e eufórica, cede espaço ao teor intimista, de ponderação. A montagem efetua belo trabalho com durações e rupturas (encontrando uma preciosa brecha para a cena do rapaz despertando na cama), enquanto os sons mesclam de maneira equilibrada as vozes, ruídos e trilha sonora. O elenco está excelente em conversas de aparência improvisada, dentro do domínio e conforto de cada ator. É possível acreditar nas pequenas provocações, no estilo despojado de falar, nas gírias utilizadas. Os cineastas evidentemente conhecem o mundo retratado. Assim, o respeito por estas pessoas os impede de recorrer à idealização e ao exagero das mazelas. O grito de injustiça fica preso na garganta, e quando sai da boca dos heróis, se converte em versos, rimas, poesia. O drama se cola ao ponto de vista destes homens, boicotando as figuras de poder, meramente sugeridas fora de quatro - eles sequer adquirem o status de personagens autônomos. O pacto de solidariedade com Nik, Def e Bryan faz com que a câmera (e o espectador) se converta num quarto amigo no grupo, experimentando a tragédia pela perspectiva destes indivíduos.

Filme visto online no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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