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Crítica


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Sinopse

Artemis nunca teve um bom relacionamento com o pai, que abandonou a família quando ela era criança. Após descobrir que ele sofre de esclerose múltipla e precisa de cuidados diários, ela é a única capaz de assumir esta função. Artemis se muda a Atenas contra a sua vontade, e aos poucos, reata com o homem debilitado. Certo dia, uma descoberta a respeito do pai força a jovem a reavaliar o passado.

Crítica

“Um filme sobre amor, movimento, fluxo (e a falta deles)”. 66 Questões da Lua (2021) se abre com esta rara explicação, espécie de cartilha de intenções ao espectador. A frase serve para direcionar as leituras: caso não se enxergasse estes aspectos por conta própria diante da projeção, agora existe um condicionamento para se atingir a leitura esperada pela diretora Jacqueline Lentzou. A questão do amor (ou falta dele) é evidente a partir do reencontro forçado entre a filha Artemis (Sofia Kokkali) e o pai Paris (Lazaros Georgakopoulos), que abandonou a família na infância. Agora, doente, ele precisa de suporte para os cuidados diários. As noções de fluxo e movimento decorrem da doença: o patriarca sofre de esclerose múltipla, provocando a deterioração progressiva do corpo e da fala. A jovem tímida e retraída precisa se fazer forte para erguer o pai da cama e da cadeira de rodas, limpá-lo, ajudá-lo na fisioterapia. No cerne do longa-metragem grego existe um drama clássico sobre reconciliação familiar, reparando traumas que permaneciam escondidos há décadas para os protagonistas. Há um teor próximo do terapêutico na decisão de uni-los contra a sua vontade, acelerando o processo de cura.

Apesar da premissa propensa ao melodrama, a cineasta oferece um caminho menos calcado em lágrimas e no poder reparador do perdão - o projeto passa longe de uma fábula cristã. Ela prefere manifestar seu distanciamento dos personagens através de símbolos, assumindo a função que normalmente seria atribuída aos diálogos. Ao invés de conversarem, filha e pai expressam em silêncio sua raiva e incompreensão quanto à posição alheia. Ele se recusa a responder às perguntas dela, embora tenha controle da fala, e se mostra mais autônomo na presença de um amigo da família do que junto a Artemis. Ela, por sua vez, rasteja pelo chão da casa para simular a experiência de perder o movimento das pernas, treme exageradamente ao acender um cigarro, imitando o descontrole motor de Paris, além de dançar sobre o chão da garagem coberto de espuma e compartilhar o sonho no qual os membros humanos são substituídos por aqueles de um cervo. O roteiro embarca numa viagem psicológica, de sintomas e latências em detrimento de atos propriamente ditos. Ambos os protagonistas têm dificuldade de se comunicar, por isso o texto encontra alternativas para representar seus sentimentos.

Um dos fatores mais interessantes se encontra na possibilidade discreta de uma revanche por parte da filha cheia de rancores. Agora ela detém o poder sobre o pai, podendo atender às demandas solicitadas ou recusá-las. Para Lentzou, Artemis é uma jovem introvertida, solidária, mas certamente ferida demais para aceitar o cargo de cuidadora sem protestos. Em consequência, certas passagens acenam à perversidade de, talvez, soltar o corpo do homem debilitado no chão, ou deixá-lo sem as injeções necessárias. O cinema grego tem produzido uma série de filmes familiares incômodos pelo caráter autodestrutivo das famílias disfuncionais (vide as obras de Yorgos Lanthimos). A diretora é mais sutil com seus personagens, porém permite que a garota dê vazão aos compreensíveis sentimentos de ódio em relação ao patriarca. Em busca de respostas para o abandono na infância, ela se encontra diante de um homem incapaz de falar claramente - Artemis nunca esteve tão perto e tão longe da justificativa do que lhe ocorreu décadas atrás. A frustração se traduz em belas cenas na estufa de flores e no quarto, sozinha, quando o mesmo conflito pode ser percebido como manifestação de afeto ou represália, dependendo do ponto de vista.

66 Questões da Lua encontra, em paralelo, formas interessantes de expressar o ponto de vista da dupla a respeito do passado. Ela tem seu diário lido pela narração em off, num texto que combina sensações e acontecimentos íntimos com fatos históricos significativos aos olhos da autora. Este registro sonoro se sobrepõe às imagens gravadas pelo pai entre 1996 e 1999, quando ainda convivia com a filha. Sem qualquer elemento explicativo, estes registros duplos e díspares são oferecidos ao espectador, que precisa decifrar a origem e o valor de sua sincronicidade pela edição. Ora, este estranho recurso serve a colar, pela linguagem, a visão de pai e filha. Antes de se encontrarem fisicamente, eles se reúnem através da linguagem cinematográfica. O fato de eleger a cuidadora para controlar a banda sonora, e o paciente para dominar a banda imagética, propõe que o resultado audiovisual seja compreensível em sua integralidade somente pela fusão entre os dois. A cineasta encontra metáforas criativas e acessíveis de provocar os sentidos do espectador para aprofundar a delicada psique de Artemis e Paris.

Assim, Lentzou evita ferramentas estéticas que se sobreponham aos personagens e chamem atenção excessiva a si mesmas. Os planos fixos e abertos apontam para certa frieza diante dos conflitos, embora haja close-ups suficientes para o espectador descobrir as reações da atriz. Sofia Kokkali encarna a protagonista com respeito e complexas variações: em alguns instantes, Artemis soa infantil, regredindo ao estágio de criança birrenta, e então se mostra uma adulta independente (a cena do restaurante). Ela brinca com as amigas e simula a morte num jogo de mímica, provando uma abertura lúdica à representação da morte, antes de apresentar uma corporalidade rígida dentro do espaço doméstico. Lazaros Georgakopoulos opta por um caminho semelhante de ambiguidade, evitando converter o pai num vilão, ou numa vítima arrependida. Uma vez descoberto o segredo de Paris, a percepção deste sujeito pode se transformar, ou se esclarecer: somos levados a reinterpretar seu comportamento até então à luz das revelações. O drama parte de uma configuração familiar simples sem sucumbir aos clichês, nem alienar o espectador. Encontra-se uma forma muito bonita e humanista de representar as dores de cada um por este olhar compreensivo, mas não paternalista - e, sobretudo, isento de julgamentos morais.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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