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Sinopse

Mustafa tem sua vida dividida entre duas casas: uma em Israel, onde se encontram a esposa e o filhos, e outra na Palestina, a 200 metros, onde ele reside por não possuir passaporte israelense. Um muro com forte fiscalização separa as residências, embora o homem viaje diariamente ao lado israelense para trabalhar. Ao saber que seu filho está internado num hospital, ele faz de tudo para visitar o garoto, mas um problema burocrático o impede de cruzar a barreira. Ele precisa encontrar maneiras alternativas, e ilegais, de chegar ao seu destino.

Crítica

O drama parte de uma compreensão tão estrita quanto simbólica das distâncias: por um lado, o título nos lembra que Mustafa (Ali Suliman), um homem de classe média, vive na Cisjordânia, enquanto a esposa e os filhos se encontram do outro lado do muro, a duzentos metros de distância. De sua casa, ele enxerga a janela dos familiares em solo israelense. No entanto, a demarcação possui flexibilidade: ela é próxima o suficiente para ir e voltar a Israel diariamente para trabalhar; porém longe o bastante quando se leva em consideração as filas e burocracias envolvidas nos controles de trânsito. Quando descobre que o filho sofreu um acidente, mas o cartão de travessia de Mustafa está vencido, ele precisa encontrar outra maneira de chegar ao destino. Inicia então uma viagem dantesca, de um dia inteiro, para percorrer este caminho por vias ilegais e improvisadas. Para o diretor Ameen Nayfeh, medidas são relativas às percepções, dependendo da classe social, da religião, da origem. Para a turista alemã Anne (Anna Unterberger), as passagens estão abertas. Já os palestinos na Cisjordânia enfrentam obstáculos maiores. O título se converte em ironia: a precisão da distância é distorcida, relativizada, até perder o sentido. O pai enfrenta uma verdadeira epopeia para superar barreiras físicas e imaginárias.

O excelente roteiro insere numa van clandestina os principais conflitos políticos relacionados àquela região atualmente. O dispositivo metonímico permite colocar lado a lado cidadãos israelenses e palestinos, policiais de ambos os lados, militantes pela causa palestina e outros apáticos ao conflito, mulheres e homens. A convivência através de laços precários (eles precisam do dinheiro e da cooperação uns dos outros para passarem pelos controles na estrada) expõe os laços de conveniência e arranjos políticos. Bandeiras dispostas pelo caminho, notícias sobre desemprego e reportagens citando Donald Trump e Benjamin Netanyahu situam o percurso fabular numa contemporaneidade precisa. Trata-se de uma época de segregação, intensificada pelo senso de superioridade e de posse das classes privilegiadas. Sem apontar culpados ou mocinhos, nem formular uma solução ao problema, a obra privilegia uma guerra simbólica, visível pelo impacto diário na vida dos cidadãos. Por isso, o discurso soa simultaneamente íntimo e popular, público e privado. É fácil se identificar com o herói, e também com a esposa pragmática, a estrangeira que desconhece os códigos locais e o rapaz militante, viajando rumo a um casamento. O texto constrói em detalhes a personalidade de cada um deles.

Outra escolha inteligente se encontra no ponto de vista: A 200 Metros se cola ao corpo e aos olhos de Mustafa. Aquilo que o palestino não consegue enxergar, o público tampouco descobre. Isso significa que o estado do filho doente permanece uma incógnita - seria um acidente grave, ou apenas um susto? Impossibilitado de telefonar à esposa, o herói fica no escuro, e o público o acompanha. As lágrimas e indignações de um melodrama estão ausentes nesta aventura física e psicológica onde os personagens atravessam mais do que uma guarita ou um controle de passaportes, descobrindo uma organização absurda de mundo (“Esse é o meu muro!”, gritam os atravessadores). O drama se aproxima de um filme de ação e suspense conforme o tempo se dilata e o protagonista permanece distante do objetivo: a demora implica no risco de ver o filho morto no hospital, ou de ser pego pelos agentes israelenses. Nayfeh manipula habilmente o tempo e o espaço: a configuração engraçada a princípio - a malandragem dos motoristas, o inglês errado de Kifah (Motaz Malhees), os sonhos do adolescente Rami (Mahmoud Abu Eita) - se torna grave à medida que as horas se passam e os problemas persistem. Drama = comédia + tempo, diria a fórmula do cinema clássico. O projeto vai além, sugerindo que suspense = drama + tempo, posto que a duração esticada do trajeto, narrada em detalhes, sugere a iminência de dificuldades.

No papel principal, Ali Suliman efetua uma composição sóbria, fugindo às armadilhas tentadoras do “pai coragem” de virtudes inabaláveis. O ótimo ator de The River (2021) e Paradise Now (2005) preserva no olhar carrancudo e nas frases lacônicas um desespero contido, como se estivesse se controlando para não atacar os colegas. Suliman está confortável nas brincadeiras com os três filhos pequenos, no orgulho de sua posição de pai de família, porém aberto o suficiente para tolerar os israelenses e acatar a autonomia da esposa. A dor nas costas, apresentada desde o início, transforma-se no pequeno elemento crônico capaz de testar os limites do protagonista. Na chave de gradação, ou seja, apropriando-se de um pequeno conflito inicial de intensidade crescente, o filme analisa a resistência do sujeito e a capacidade de preservar a civilidade antes de explodir. O princípio bélico é simbolizado pela arrogância do motorista, o egocentrismo da jovem alemã, o ativismo retórico e perigoso de Kifah. Para o filme, pessoas em guerra nada mais são do que indivíduos provocados incessantemente por situações de injustiça - pouco importa de qual lado se encontrem.

A direção é generosa com o espectador ao trabalhar com uma câmera na mão, leve e fluida, convertendo o interlocutor num ocupante suplementar no veículo. Há uma complexa paisagem sonora marcada por ruídos, conversas e trilha sonora, enquanto a fotografia reforça o cansaço de Mustafa sem romantizar a miséria. Ao final, o calvário constitui um dia qualquer na vida dos personagens, o que reforça a ironia e a potência do discurso. A narrativa corre o risco, a certa altura, de ser monopolizada por Anne, que adquire importância excessiva e deixa os palestinos em segundo plano. Entretanto, rumo ao final, volta aos eixos e reestabelece suas prioridades. A 200 Metros escapa à chantagem emocional, à piedade e ao paternalismo, que seriam soluções fáceis neste caso. Nayfeh embute num único dia um mosaico de dilemas sociais, políticos, culturais e econômicos de maneira orgânica, com poder ímpar de concisão. Talvez a trama soe instrumentalizada demais a parte do público, ou seja, sem aleatoriedade nem respiro, com personagens representando funções úteis à narrativa. No entanto, consegue mesclar a estrutura do drama clássico com a complexidade sociológica do cinema político, transparecendo maturidade notável para um diretor em seu primeiro longa-metragem.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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