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Sinopse

Rapaz exemplar que estuda numa prestigiada universidade norte-americana, Alexandre conhece a filha do novo companheiro de sua mãe numa rápida passagem por Paris, na França. No dia seguinte, a garota o acusa de estupro.

Crítica

O sexo está por todos os lados e, na maioria das vezes, não tratado como algo natural, que faz parte da vida. O pai abusa do poder que sua condição profissional de prestígio lhe proporciona para levar para a cama uma estagiária recém-chegada. A mãe inventa uma desculpa para que o filho, que veio dos Estados Unidos para uma visita rápida e reservou uma noite para estar com ela, saia logo após da refeição levando como companhia a filha do novo companheiro materno. Assim que os dois jovens deixam o apartamento, os amantes maduros se jogam um nos braços do outro, felizes por estarem, enfim, sozinhos. Também o rapaz, fruto de um casamento desfeito, assim que chega em Paris – ignorado pelo homem, adiado pela mulher – trata de se entregar a um desejo carnal, partindo em busca de uma conquista que há muito foi interrompida. Os exemplos vão se enfileirando nos primeiros minutos de A Acusação, como se necessário para o entendimento do que virá em seguida. Quem pensar, no entanto, que se trata apenas de uma soma lógica de lá com cá, engana-se. Não há respostas fáceis frente ao drama que aqui se manifesta, e se o diretor e roteirista Yvan Attal (O Orgulho, 2017), por um lado, abre por demais o espaço para que cada um na audiência forme seu próprio julgamento, há também o viés desequilibrado entre esses dois extremos, tornando difícil qualquer avaliação mais apressada. A impressão de simetria existe, mas essa é falha.

O título original, Les Choses Humaines, poderia ser traduzido como As Coisas dos Homens, ou seja, uma referência às escolhas que cada um toma sobre o que deseja carregar consigo. Essa é uma percepção que cai com maior precisão aos espectadores, porém, dos que aos personagens em cena. A partir do momento em que o realizador opta por dividir sua narrativa por capítulos, ainda mais sendo as duas primeiras, supostamente, as versões “dele” e “dela” a respeito do ocorrido, de imediato se estabelece um diálogo que afirma: eis o que aconteceu sobre o ponto de vista de um, e, depois, de acordo com o outro. No entanto, ambas as leituras são contaminadas, pois apresentam o antes e o depois, mas não o momento debatido em si. Esse surge só ao final, já no desfecho da narrativa, e aos pedaços, como um quebra-cabeças a ser montado pelo público. Ainda assim, os instantes anteriores correspondem a apenas uma das visões, assim como os seguintes estarão mais de acordo com a segunda declaração. A verdade, portanto, inexiste. Como no caso do gato de Schröndinger, que tanto pode estar vivo quanto morto dentro de uma caixa fechada, o que ocorreu no quartinho de manutenção do parque naquela noite, longe de tudo e todos, pode ou não ser visto como um estupro.

A quem cabe julgar, portanto? Alexandre Farel (Ben Attal, na vida real filho do cineasta com Charlotte Gainsbourg, que interpreta a mãe do jovem também na ficção) é um bem-sucedido rapaz que está terminando seus estudos no exterior e voltou ao lar por poucos dias apenas para prestigiar a cerimônia de reconhecimento com a Ordem da Legião de Honra que será concedida ao pai, o jornalista e apresentador Jean Farel (Pierre Arditi, de Belle Epoque, 2018). Este está separado da ex-mulher (Gainsbourg), uma ativista da causa feminista, dona de fortes opiniões e bastante ouvida pela mídia. Ela agora mora com Adam Wizman (Mathieu Kassovitz), um professor que também deixou a família, mas principalmente a esposa religiosa (Audrey Dana, de O Doutor da Felicidade, 2017). Afinal, insiste em ter a filha mais velha, Mila (Suzanne Jouannet), morando com ele. Após um jantar de reencontro, o casal mais velho insiste que Alexandre leve Mila consigo para uma festa a qual ele já pretendia ir. Algo bastante normal, ao menos até o dia seguinte, quando uma ordem policial o leva preso, acusando-o de ter estuprado a garota com quem esteve na noite anterior.

Yvan Attal, também um dos roteiristas (ao lado de Yaël Langmann, de Carnívoras, 2018), não está disposto a oferecer soluções óbvias. Ao longo de mais de duas horas, irá se ocupar, além da exposição dos relatos dos principais envolvidos, com o julgamento em si, trinta meses após a denúncia. Nesse período, enquanto Alexandre tem sua vida destruída, Mila, por outro lado, vê a reconstrução de suas origens. O jovem acaba tendo que largar os estudos na América pouco antes de sua conclusão, passa a ser constantemente atacado pelas redes sociais, e por ter cruzado com a suposta vítima na rua – e ousado confrontá-la com um pedido de desculpas por qualquer mal-entendido que tenha ocorrido entre eles – termina preso pelos últimos três meses. Ela, por sua vez, acompanha o desmanche do novo relacionamento do pai e a consequente volta dele para casa. Ao mesmo tempo, se torna uma figura notável na imprensa, alcançando uma notoriedade que nunca antes havia sonhado ser possível. Discursos empoderados, referências ao movimento #MeToo e alegações que vão além do incidente em si, mas abordando questões mais amplas e complicadas, passam a ser constantes em suas entrevistas. Porém, a despeito das zonas cinzas existentes tanto de um lado como do outro, alguns fatos são incontornáveis: os dois fizeram sexo; em nenhum momento ela declarou verbalmente ser contrária ao coito; ele não possui antecedentes incriminadores e todos os que se dispuseram a testemunhar a seu respeito o fizeram com elogios e nenhuma ressalva.

Afinal, por mais que A Acusação possua um caráter curioso, ainda mais à audiência nacional, que irá se deparar com um processo judicial bem distinto do brasileiro – e também do norte-americano, mais frequente nas telas locais – em seu âmago exibe um debate de grande identificação. Uma mulher afirma ter sido estuprada. Um homem insiste em sua inocência, alegando ter sido tudo consensual. Ninguém mais estava presente no momento apontado. Em qual dos dois acreditar, portanto? Há prioridade na palavra da vítima? O fato dessa ser uma mulher faz diferença? Como seria essa interpretação, fosse invertido o sexo dos envolvidos? Numa parábola de forte conotação ética e moral, um elenco afiado entrega o seu melhor para abrir o maior número de portas possíveis referentes aos questionamentos propostos, permitindo, ao mesmo tempo, que a conclusão fique a cargo de qualquer um atento ao desenrolar dos eventos. Apontar uma coisa ou outra parece ser simples, mas como justificar tais avaliações? Essa, afinal, é a pergunta a ser respondida.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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