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Sinopse

Os dilemas da juventude numa grande cidade adquire contornos de fábula. Estudante de 16 anos, Luiza se depara com algo misterioso e decide fazer da alegria um lema pessoal.

Crítica

A vontade de mudar o mundo frequentemente é tida como prerrogativa da juventude. E o cinema não ficou alheio a esse movimento, muitas vezes observando figuras que aproveitam, como motivador, o turbilhão anterior à vida adulta para afrontar o entorno. Os protestos estudantis dos anos 1960 – Maio de 1968 na França, Primavera de Praga, insurreição dos reprimidos pela ditadura no Brasil – galvanizaram historicamente os mais moços como propensos a se indignar perante a realidade vigente. Em A Alegria, os cineastas Felipe Bragança e Marina Meliande recorrem a essa dinâmica, mas localizam a ação e a inconformidade no Rio de Janeiro. Tudo começa com um Bate-Bola (fantasia carnavalesca comum no estado fluminense, também conhecido como Clóvis) sendo alvejado por desconhecidos. Na verdade, dois são baleados. Um é encontrado adiante boiando morto num rio. O outro, João (Junior Moura), sobrevive com um ferimento no pé. Ele aparece para sua prima, Luiza (Tainá Medina), pedindo ajuda e discrição. Desde aí se instaura a natureza fabular.

Geralmente, as lendas remontam ao longínquo e residem na fronteira opaca entre realidade e invenção. A Alegria permanece nesse âmbito, ainda que mostre o mito em construção, capitaneado por uma protagonista caracterizada pela fala declamada e o olhar beirando o transe. Felipe Bragança e Marina Meliande fazem uso dos privilégios revolucionários da juventude para dar asas à imaginação, não limitando-se aos pressupostos da estrita e limitadora realidade. Somente nos seus movimentos finais o filme descamba à literalidade quanto ao fantástico, permitindo que um anel ganhe ares de artefato mágico e apresentando a criatura marítima que anteriormente fazia parte do imaginário evocado. A trama não é orientada por um crescendo tradicional, ao contrário, pois as elipses fazem parte dessa artimanha híbrida. Elas tornam as personalidades incapazes de ser domesticadas por uma progressão lógica. Os personagens reagem ao momento, especialmente os colegas de Luiza, repetidas vezes tragados para esse redemoinho provocado por uma determinação enorme em ebulição.

Visto depois que Felipe Bragança e Marina Meliande desenvolveram seus temas e abordagens caros em outras produções, A Alegria soa um tanto cru, mas premonitório. Por exemplo, o monstro marinho se assemelha em função ao Amarelo de Um Animal Amarelo (2020), enquanto a reverência aos símbolos, vide a máscara de Carmen Miranda, remete à Tragam-me a Cabeça de Carmen M. (2019), ambos de Bragança. Há certamente algo que ressoa em Mormaço (2018), primeiro longa solo de Meliande. Talvez até por conta da inexperiência, aqui os dois constroem de modo rudimentar o universo em que a realidade está impregnada de fabulações, no qual movimentos como a afronta aos avanços da polícia repressora oscilam entre a exatidão e a ambivalência. Em alguns instantes, o filme ensaia permanecer numa inércia ora expressiva, ora contraproducente, mas nada neste caso que contamine o resultado ao ponto de enfastiar ou algo que o valha. No entanto, aos que estiverem em busca de respostas inequívocas, de pingos nos is, provavelmente o percurso imponha desafios adicionais.

Em certo ponto de A Alegria, Luiza relaciona a coragem à juventude, provocando os demais (e o espectador, por conseguinte) com o questionamento sobre a idade a partir da qual se perde o ímpeto. Felipe Bragança e Marina Meliande mostram adolescentes cabulando aula, tateando um universo tacanho em que o desejo pode ser visto como contravenção, munidos da impetuosidade para realizar sonhos. Diante do núcleo mais jovem, o primo Bate-Bola desempenha um papel curioso, sendo um elo intermediário entre a mocidade efervescente e a vida adulta que tende à estagnação. Personagens como os pais de Luiza e a tia que sofre a possível perda do filho, bem como o trânsito entre a baixada fluminense e a zona sul da Cidade Maravilhosa, acabam perdendo um pouco de fôlego em comparação à prevalência da expressividade dos pequenos reformadores que pretendem fazer da felicidade uma arma de resistência. O que sobressai no filme é justamente o delineamento de uma existência demarcada pelas contingências do real e também pelas singularidades da imaginação.

 

Filme visto online, no 1º Festival de Cinema Brasileiro Fantástico, em maio de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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