Crítica
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Sinopse
Crítica
A priori, nenhum conhecimento extrafilme deveria ser necessário para a análise de cinema. Afinal, o filme revela por si próprio seus processos, e quando prefere ocultar as circunstâncias do trabalho artístico, deveria ser lido por este gesto deliberado. No entanto, A Artista e o Ladrão (2020) desperta curiosidade quanto à concepção do projeto. Além de narrar uma trajetória excepcional (a artista que se torna melhor amiga do homem responsável pelo roubo de suas obras), o diretor Benjamin Ree o faz ao vivo, passo a passo, ano a ano. Isso significa que o cineasta não descobriu este episódio e decidiu reconstrui-lo para as câmeras: ele se encontrava dentro do apartamento de Barbora Kysilkova quando ela tomou conhecimento do furto, e enquanto assistia às primeiras reportagens de televisão a respeito. O cineasta seguiu a audiência, o processo jurídico, os anos de prisão de Karl Bertil-Nordland, a busca da pintora para recuperar os quadros. A câmera se posiciona no interior da prisão, durante a terapia do carcerário, na terapia de casal de Barbora e o namorado, dentro de um quarto de hospital, e no instante quando a pintora é ameaçada de expulsão do ateliê por atraso no aluguel.
O documentário desperta a curiosa impressão de onipresença e onisciência, algo permitido, de costume, somente às ficções. A possibilidade de registrar os fatos conforme eles acontecem soa extraordinária: Ree não apenas obtém autorização para filmar dentro da cadeia, mas o faz no exato momento em que o ladrão é conduzido à sua cela. Ele acompanha Barbora enquanto ela pinta cada quadro, ao longo de horas. O dispositivo cinematográfico desperta a impressão de ter convivido diariamente com seus personagens durante muitos anos, a ponto de criar uma intimidade rara, e o consequente senso de invisibilidade. A partir do momento em que os protagonistas se tornam grandes amigos, há meia dúzia de cenas potentes com reações de Karl Bertil-Nordland ao retrato feito pela artista, e desta quando reencontra um objeto perdido. A câmera está colada aos corpos, aos rostos, ao lado da tela sendo pintada e das confissões mais preciosas. Entretanto, jamais desperta a impressão de incomodar os personagens, nem de ser percebida por eles. O cinema se torna ao mesmo tempo espião (por observar aquilo que ninguém mais vê) e cúmplice (por estar junto deles, na posição de um amigo a mais na sala de estar). O cineasta obtém uma combinação improvável de proximidade e distanciamento.
Deste modo, o filme produz tanto a imersão decorrente da presença ao vivo quanto a reflexão proporcionada pela passagem do tempo. Robert Stengard efetua uma proposta ousada para a montagem, ora acompanhando longas cenas sem cortes, ora saltando anos na vida de ambos sem precisar os meses decorridos, nem efetuar rupturas narrativa para explicitar a mudança. Entendemos a transformação dos personagens pelas entradas e saídas da cadeia, internações e liberações do hospital, mudanças de corte de cabelo e porte físico. A narrativa se permite idas e vindas no percurso da dupla, contando a mesma história inicialmente pela perspectiva da pintora, e depois, por aquela do amigo. O filme sustenta a impressão de continuar colado a cada um deles, inclusive quando seus caminhos se separam. Melhor ainda, Ree pede a Barbora que conte a história de Karl, e vice-versa. Assim, ele evita a narrativa confessional em primeira pessoa, tão comum ao documentário biográfico, fugindo simultaneamente à armadilha da narração explicativa em off. O cineasta admite que seu interesse se encontra mais na subjetividade dos protagonistas do que nos fatos. Pouco importa se contam histórias verdadeiras: o interesse decorre do profundo conhecimento que adquirem um a respeito do outro.
Além de constituir um filme sobre amizade, O Artista e a Ladrão se torna uma indagação metalinguística do processo artístico. De onde vem a inspiração de um criador, o interesse por um tema em particular? O que motiva Barbora a pintar o sujeito que roubou (e jamais devolveu) suas obras mais valiosas e, por extensão, de onde surge o interesse de Ree em segui-los por vários anos? O cineasta busca compreender a fascinação que une estes indivíduos. No caminho, lança algumas hipóteses valiosas: a paixão dos dois por uma estética fora dos padrões, o passado comum de abusos físicos e emocionais, a sensação de liberdade despertada pela arte e pelo roubo, a noção de vício associada tanto ao ato de pintar quanto ao consumo de drogas. A direção aproxima a dupla em sua compreensão de mundo, para o desconforto de Øystein Stene, namorado da protagonista, preocupado com o interesse da jovem pela decadência e a morte. Haveria um componente nocivo, e possivelmente perverso, na união entre estes marginais? O discurso propõe um complexo mergulho psicológico, evitando qualquer julgamento moral aos atos deles. O respeito no tratamento a Karl Bertil-Nordland e à intimidade de Barbora Kysilkova constitui outro mérito da direção, que certamente presenciou os piores momentos de ambos, mas preferiu ocultar aspectos sensacionalistas e melodramáticos.
Felizmente, o projeto se encerra sem valiosas lições de vida, nem superações de dificuldades através do amor e da amizade. Ree acompanha o caso tão singular pelo prisma de uma crônica cotidiana. O cineasta retira desta amizade o exotismo e a empolgação diante da raridade. No decorrer da narrativa, a pintora e o ladrão são apenas Barbora e Karl, visto que o discurso deixa de qualificá-los enquanto tais. Existe um componente humanista valioso em projetos deste tipo, fascinados pelos seres humanos, tentando compreendê-los ao invés de descrevê-los. Jamais recebemos informações quanto ao passado criminal do marceneiro, nem à importância das obras da protagonista. O filme não o descreve como um perito do crime, ou ainda a ela, como uma artista de talento notável. Nenhum deles é instrumentalizado pela vontade de tornar a amizade mais chamativa ou exemplar, pelo contrário, testemunhamos suas vidas cotidianas, a comida compartilhada, as mensagens deixadas por telefone. Ree ultrapassa a notícia de jornal e o furo de reportagem para apreender em imagens as motivações: por que o homem rouba, por que a mulher decide se aproximar dele? Astuciosamente, o diretor evita fornecer respostas, preferindo efetuar boas perguntas.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 9 |
Daniel Oliveira | 7 |
Chico Fireman | 7 |
Ticiano Osorio | 8 |
Leonardo Ribeiro | 8 |
MÉDIA | 7.8 |
Ótima resenha crítica! Muito bem escrita. Achei o filme bom, interessante por prescindir da "suspensão voluntária da crítica". A saber-se real, a história acontece em sua espontaneidade, criando a expectativa de fatos...
Disse-nos Ezra Pound: o crítico leva à leitura. A crítica, com propriedade, de Bruno Carmelo, leva-nos ao filme.