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Crítica
Desconfie de alguém e/ou de grupos que defendem ou mesmo financiam o esquecimento. A nossa História (assim mesmo, com H maiúsculo) é repleta de episódios pouco felizes: guerras, genocídios e outras brutalidades que sustentam as teses sobre a natureza maldosa do ser humano. E sempre tem gente defendendo o "não se apegar ao passado", pois o importante seria o futuro. Essa obsessão pelo amanhã nada mais é do que uma fome predatória disfarçada de predileção pelo progresso. A Batalha da Rua Maria Antônia é um filme sobre algo que aconteceu há muito tempo, especificamente no conturbado ano de 1968. Alunos ideologicamente de esquerda estavam acampados no prédio da faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e frequentemente entravam em conflito com uma turma de supostos estudantes de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie – na verdade eram agentes disfarçados de universitários que integram o Comando de Caça aos Comunistas (CCC). No dia em questão, houve uma batalha por conta do pedágio que os alunos da USP faziam para financiar o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). No entanto, na versão ficcionalizada escrita e dirigida por Vera Egito os estudantes de esquerda estão em meio a um plebiscito que envolve várias outras instituições. O motivo da votação é praticamente irrelevante, pois o princípio dessa nova dinâmica é proteger a democracia.
A Batalha da Rua Maria Antônia é formado por 21 planos-sequência contados regressivamente. São takes de durações variadas. Numa escala de valores críticos, é recomendável que a ousadia seja previamente festejada. Então, é de antemão louvável o modo expressivo e arrojado como a fotografia assinada por William Etchebehere desenha os capítulos da situação na qual a tensão é permanente, podendo haver um escalada rumo à tragédia a qualquer momento. Vera Egito constrói bem o suspense que pauta o comportamento inquieto de uma câmera sempre querendo enfatizar os cenários (literais e os simbólicos) e também os personagens. Enquanto o dispositivo transita por um prédio visado pela polícia e repleto de bem-vindas ideias inflamáveis, a textura altamente granulada da imagem é encarregada de criar a sensação de documento histórico. A cineasta não precisa se aproximar narrativamente do documental, inclusive deixando sempre muito claro que estamos vendo uma ficção alimentada pela realidade (e não radicalmente submissa a ela). No entanto, a fotografia simula plasticamente a urgência comum aos documentários nos quais os realizadores são pegos “no olho do furacão”, aqui exatamente no epicentro de carícias, discordâncias, brigas e afins. Já a granulação confere um aspecto de rigidez às imagens nas quais a sombra interage com luz a fim de traduzir visualmente as tensões, as contradições e a urgência de certos procedimentos.
Em meio à evidente admiração pelos jovens/professores decididos a permanecer e lutar, Vera Egito desenvolve outros elementos. Desse modo, A Batalha da Rua Maria Antônia é mais do que a reconstituição parcial de um episódio fundamental para compreendermos a luta entre resistência e ditadura nos anos 1960 no Brasil. Se há alguém que pode ser definida como protagonista é Lilian (Pâmela Germano), a jovem apaixonada pela melhor amiga de infância que milita ferrenhamente na linha de frente. Lilian não é a ideologista que personifica a luta contra o fascismo e o autoritarismo. No que diz respeito ao aspecto humano, essa opção dramática evita heróis e heroínas bidimensionais vencendo vilões desalmados por estarem do lado da justiça. Lilian é movida pelo amor, chegando a agir violentamente (fora dos olhares da câmera) para provar a afeição pela amiga por quem é apaixonada. No fim das contas, ela simplesmente não consegue ser isenta e neutra em tempos de exceção. A professora de filosofia que também reluta em arregaçar as mangas é igualmente levada pelo amor à ação contra o autoritarismo. Dessa necessidade de agir em nome do coração surge a conscientização política/social. Aluna e professora preferiam não se envolver, mas são impulsionadas pela emoção a pegar em armas. Pena que esses amores transformadores acabam sendo subestimados como combustível e não são muito bem trabalhados.
A Batalha da Rua Maria Antônia ganha com a construção das cenas em plano-sequência? Não muito, na verdade. Uma vez que há elipses (supressão de tempo) entre os takes, faz pouco sentido não haver cortes para dinamizar ainda mais esse relato angustiante e tenso da rebeldia juvenil. Isso relativo ao tempo. Já quanto aos espaços, a técnica tem efeitos bem mais positivos e bem-vindos. Vera Egito vai descascando os ambientes por meio da câmera inquieta convidada ao constante movimento. Portanto, a fluidez própria do plano-sequência é mais eficaz para compreendermos melhor a noção de pertencimentos dos alunos ao prédio que, então, se transforma num quartel general, mas principalmente em outro personagem da resistência. Vera nem sempre consegue integrar organicamente as demandas amorosas e políticas das pessoas envolvidas, às vezes meio que derrapando ao interromper bruscamente a ação para mostrar o amor dando as caras numa circunstância pouca convidativa aos romances. Em que pese isso, porém, é bonita a ideia do desejo persistindo como um dos motores vitais dessa juventude disposta a tudo para manter a democracia. Aliás, voltando a falar disso, Vera Egito condensa a ideia de que os alunos lutarão para manter intacto os trâmites da democracia no zelo pela valiosa urna do plebiscito. Se for possível proteger o rito democrático, a própria democracia chega viva ao fim do dia. É sobre isso.
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