Crítica
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Sinopse
Num futuro próximo, em que a inteligência artificial comanda grande parte das atividades, as emoções se tornaram ameaçadoras. Para se livrar delas, uma mulher resolve purificar o próprio DNA voltando às suas vidas passadas.
Crítica
Ao fazer A Besta, sua versão cinematográfica de A Fera na Selva – conto publicado originalmente em 1903 pelo britânico Henry James –, o cineasta francês Bertrand Bonello optou por um intrincado thriller romântico-futurista-espírita. A protagonista é Gabrielle (Léa Seydoux), habitante do futuro asséptico em que as inteligências artificiais avançaram no mercado de trabalho ao ponto de gerar um contingente de mais de 60% de desempregados. No entanto, o filme não está preocupado com o contexto social, fazendo menção a ele somente como modo de enfatizar a distopia. O começo confuso alterna cenas desse amanhã com pouca circulação humana, no qual as pessoas se divertem em pequenas bolhas de passado, e as com Gabrielle trajando vestidos pesados e dialogando com Louis (George MacKay). Os dois se conheciam, ele afirma que ela confidenciou algo que não lhe sai da cabeça. Esposa do proprietário de uma fábrica de bonecas, Gabrielle se deixa levar pelos comentários e galanteios do rapaz. No futuro, ela decide se submeter à técnica que promete extirpar as angústias por meio de uma espécie de limpeza no DNA em breves visitas às suas vidas passadas. Parece confuso, mas fica ainda mais truncado pela forma como o cineasta costura as dimensões separadas cronologicamente que possuem certos resquícios umas das outras. E, mais à frente, surge uma terceira linha temporal.
O envolvimento de Gabrielle e Louis é diferente a depender da época. No futuro, ele é uma ausência, alguém somente citado nas conversas, presentificado estritamente pelas lembranças. No passado mais remoto, é um herói romântico, daqueles cavalheiros astutos capazes de propor a damas entediadas que larguem seus maridos enfadonhos para ter uma vida mais excitante. Na cronologia intermediária, ele é um incel típico, sujeito que registra em vídeos-selfie a sua frustração amorosa, choramingando publicamente por ser virgem aos 30 anos e nunca ter beijado qualquer mulher. Um dos principais problemas de A Besta é que os três momentos se comunicam de maneira frouxa, com uma ambição pouco justificada pelo resultado que fica entre o moroso, o repetitivo e o nonsense. Bertrand Bonello bem que tenta fazer um filme sobre personalidades e representações intercambiantes, sugerindo grandes questionamentos de ordem filosófica – o que sobra de Gabrielle depois que ela tiver apagadas as emoções? Ela seria constantemente uma auto-representação ou melhor encará-la como um ser fragmentado por esse decurso do tempo? Já Louis é ora o romântico empolgado por natureza, ora o babaca que transforma a sua inabilidade sexual numa força agressiva direcionada às mulheres (misoginia). Mas, o filme não cria um senso de conectividade entre as partes, assim o fragmentando demais.
A Besta acaba sendo uma versão às vezes exaustiva (e sem graça) de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004) – guardadas as devidas proporções entre o romantismo cativante do filme de Michel Gondry e essa malsucedida tentativa de fundir distopia e amor. Sobretudo na cronologia intermediária, fica evidente que Bertrand Bonello tenta mimetizar (sem sucesso) o cinema de David Lynch, buscando reproduzir em sua história confusa e cada vez menos interessante vários ingredientes da obra do norte-americano considerado um neo-surrealista. Cidade dos Sonhos (2001) é o filme-matriz nesse sentido, até porque Gabrielle tem o mesmo penteado da personagem de Naomi Watts no longa-metragem de Lynch e, além disso, também é uma atriz enfrentando dificuldades para prevalecer em Hollywood. Mas, há outras tentativas de “homenagear” David Lynch, mas que soam apenas como apropriação de um estilo que não pode ser facilmente replicado. Louis visto no monitor da câmera de segurança remete diretamente a A Estrada Perdida (1997), enquanto o bartender e as pesadas cortinas vermelhas da boate são “retiradas” de Veludo Azul (1986) – aliás, o autor das canções-tema é o mesmo: Roy Orbison. Seria lindo se Bonello utilizasse Lynch como matriz e dela extraísse a essência, mas ele prefere se ater aos aspectos superficiais. E, sem o recheio, chega apenas a uma casca oca.
A Besta é um daqueles filmes que podemos chamar de pretensioso, sem o receio de utilizar de modo vazio o argumento retórico. Isso porque Bertrand Bonello pretende fazer um grande épico amoroso que atravessa gerações, em meio a isso discutindo tópicos como identidade, projeção de futuro e destino. O estrago do tombo é sempre equivalente, em intensidade, à altura da qual a queda acontece. Nem tudo é negativo na produção, afinal de contas tanto Léa Seydoux quanto George MacKay estão ótimos em seus respectivos papeis. Há também alguns momentos bons, como a cena sugestiva da fábrica de bonecas pegando fogo (com os brinquedos de celuloide sendo deformados pelas chamas) enquanto o casal (semi)adúltero precisa decidir se tenta a saída submersa. O cineasta consegue criar um mistério instigante em torno das catástrofes (Paris alagada e um terremoto nos Estados Unidos), mas não dá conta de conectar isso aos demais vieses da trama. Logo, as tais catástrofes viram somente outro (dos tantos) elemento da ambição inversamente proporcional ao impacto dramático alcançado. Nem o realizador francês faz um filme sobre o amor que transcende encarnações, tampouco localiza os mistérios de um mundo que pode ser influenciado pelo destino (ou algo que o valha) e ainda falha ao conduzir o espectador rumo à inevitabilidade do futuro pouco auspicioso. É muito barulho por bem pouco.
Filme visto durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2023)
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