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Sinopse

Na companhia do marido, Paulette Van Der Beck dirige uma escola para moças. Sua missão é treinar jovens para serem donas de casa perfeitas. Com a morte do marido, e a descoberta de que o negócio beira a falência, ela terá de se mexer, nesse movimento colocando em xeque todas as suas crenças.  

Crítica

França, década de 1960. “As mulheres eram criadas para serem esposas perfeitas”, afirma um letreiro, antes de mencionar a existência de escolas para donas de casa e a revolução estudantil de maio de 1968. A informação surpreende ao resumir em poucos segundos a narrativa completa. (Sim, começamos nas escolas para donas de casa e terminamos nos movimentos feministas). Caso fosse um filme realista, de viés histórico e informativo, A Boa Esposa (2019) seria criticado pela simplificação dos fatos, além do caráter excessivamente didático da introdução. Felizmente, o diretor Martin Provost realiza uma obra caricatural, e orgulhosa disso. Ao invés de apresentar as drásticas mudanças sociais da década como se o espectador as visse pela primeira vez, interpreta estas passagens enquanto parte do senso comum, passando rapidamente pelos pormenores. Longe de constatar a evolução dos costumes com surpresa ou idealização, o cineasta se posiciona um passo adiante, admitindo o olhar contemporâneo ao satirizar a conduta esperada de homens e mulheres cinquenta anos atrás.

Em outras palavras, esta comédia sobre as mulheres submissas de antigamente, descobrindo a sua autonomia, jamais para de dialogar com o feminismo atual. O motor de comicidade se encontra precisamente com o abismo separando as gerações de nossos avós e a geração atual. Hoje, a ideia de uma escola onde mulheres aprendem a segurar um bule, para servir o chá corretamente ao marido, ou preparar o frango do jeitinho que ele gosta, soa ridícula. As casas repletas de flores, com papéis de paredes florais, roupas estampadas com flores e jardins de rosas constituem a sátira da delicadeza feminina. A formulação brasileira e bolsonarista da mulher “bela, recatada e do lar” constitui motivo de paródia por este olhar ao passado munido do estranhamento típico de uma ficção científica. Não por acaso, os quatro personagens principais constituem arquétipos. Trata-se do homem da família (François Berléand), um sujeito boçal e pouco admirável, além das três mulheres que o admiram profundamente: a esposa fiel (Juliette Binoche), a irmã solteirona (Yolande Moreau) e uma freira encarregada de vigiar as alunas da escola doméstica (Noémie Lvovsky). Elas dedicam cada minuto de seus dias por ele, que não faz absolutamente nada por elas. A família patriarcal soa tão falsa quanto os quadros na parede.

Para os atores, esta constitui a oportunidade de brincar com composições antinaturalistas. Juliette Binoche constrói uma voz exageradamente doce, além de gestos robóticos remetendo às Esposas de Stepford (1975). Dentro das roupas impecavelmente rosas, e com um penteado de revistas de moda, ela caminha como se prendesse a respiração. Moreau e Lvovsky, duas especialistas da comédia de costumes, investem no estilo confortável a cada uma: a primeira opta pelo rosto letárgico e os gestos sonhadores, em alusão a uma mulher pouco inteligente, em contraste com a segunda, encarnando a figura neurótica, prestes a utilizar uma espingarda contra alunas mal comportadas. As noções preconceituosas de histeria feminina, além de incapacidade de comando por parte das mulheres, tornam-se alvos centrais da comédia, cristalizadas na bela cena em que Paulette (Binoche) e Gilberte (Moreau) encontram uma coleção secreta do marido/irmão. A cena não possui função narrativa imediata, porém serve a desconstruir poeticamente o verniz de masculinidade e feminilidade de cada personagem. Este constitui um dos méritos notáveis do projeto: a disposição a efetuar um humor de imagens, para além dos diálogos, explorando metáforas e gags visuais.

Provost desenvolve uma linguagem específica para a história, capaz de reforçar a caricatura quando necessário. Ele trabalha com violentos zooms in e out, junto a aproximações físicas da câmera rumo ao rosto dos personagens, reforçando o efeito catártico das situações. Quando Paulette dirige um carro pela primeira vez, o plano fixo permanece dentro da garagem, observando o automóvel aos trancos sobre a neve, como um cavalo dando coices. Durante as andanças da protagonista pelo casarão, a câmera a acompanha em longos planos-sequência, entrando e saindo de cômodos, subindo e descendo as escadas, evidenciando o dinamismo e o humor dos gestos repetidos. A Boa Esposa não possui apenas bom texto e elenco, mas também impressionante coreografia de mise en scène. Nenhuma cena aparenta elaboração às pressas, ou desconectada das demais. Os movimentos de câmera, a duração dos planos e a luz são coesos do início ao fim. É certo que a previsibilidade da história retira parte do prazer: conforme atestam os letreiros iniciais, as personagens cumprem o exato destino emancipatório que lhes é prometido, de maneira rápida até demais. Uma delas experimentará um par de calças, e a outra, um corte de cabelo curto, tornando-se feministas inveteradas do dia para noite. Os fatos se encaminham com uma facilidade inesperada.

No entanto, Provost jamais se preocupa com os pormenores das passagens históricas, nem a sutileza das transições. Pelo contrário, ele privilegia o humor das mudanças bruscas – vide a sequência impagável da morte de Robert, com o tom das telenovelas mexicanas pelos olhos romantizados de um François Ozon. A comprovação desta ousadia se encontra na chocante cena final. Chegando aos dez minutos finais da projeção, ainda restam diversos conflitos a finalizar, inúmeras promessas a concretizar. Como o roteiro resolveria tantas ações, em tão pouco tempo? O diretor aposta no gesto mais grandioso e rebelde de todos: um número musical. Nada preparava o espectador para este desfecho colorido, coreografado, lúdico. A cena abertamente ridícula, cereja do bolo na artificialidade dos comportamentos sociais, será divertida ou vergonhosa, a gosto. O desfecho dividiu a crítica francesa, e talvez provoque impacto semelhante no público brasileiro. De qualquer modo, representa a vontade deliberada de subverter códigos e expectativas, sem medo de olhar para a História (as sequências envolvendo De Gaulle e o programa Bonjour, Madame são hilárias) e determinar que a nossa concepção de mundo, seja conservadora ou progressista, é condicionada pelos slogans de uma época. Somos condicionados ao tempo em que vivemos, mesmo que decidamos nos opor a ele. Na explosão kitsch de cores e música, a conclusão confronta com precioso sarcasmo as nossas avós e as nossas filhas.

Filme visto online no Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
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Ailton Monteiro
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MÉDIA
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