float(42) float(13) float(3.2)

Crítica


7

Leitores


13 votos 6.4

Onde Assistir

Sinopse

Quando os pais se divorciam, o adolescente Ben passa a morar na casa do pai, trabalhando com barcos no cais local. Aos poucos, ele começa a acreditar que existe algo estranho acontecendo na casa ao lado. Vigiando a rotina dos vizinhos, Ben suspeita da presença de uma criatura provocando o desaparecimento das crianças, mas não vai ser fácil convencer as pessoas de sua tese.

Crítica

Durante mais da metade de A Bruxa da Casa ao Lado (2019), duas histórias correm em paralelo, com pouco contato entre si. A primeira diz respeito a Ben (Jean-Paul Howard), pré-adolescente descobrindo a vida adulta através do primeiro romance, do trabalho num cais e da nova namorada de seu pai. Este segmento possui momentos de humor, menções ao bullying e à síndrome no ninho vazio. A segunda história se concentra na criatura vivendo na casa ao lado. Após um incidente, o monstro penetra no corpo de sua vítima e passa a controlar os gestos dessa pessoa, tornando-se imperceptível para quem a vê. As duas partes poderiam existir em filmes separados – nenhum deles particularmente memorável, porém competentes em seus respectivos gêneros. No entanto, o interesse decorre do encontro gradual entre esses mundos por meio do voyeurismo. Ben espia os vizinhos, observa um casal fazendo sexo, o bebê chorando à noite, e passa a invadir o sótão alheio. Uma colega se trabalho se insinua diversas vezes para o herói, que prefere a imaginação ao real: ele dispensa a menina para se ater à fantasia sobre algo suspeito na casa ao lado. Quando lhe perguntam ao telefone o que está fazendo, o voyeur responde que está “vendo Netflix”. De certo modo, ele de fato está, afinal, o projeto se move pela sobreposição do desejo aos fatos.

O monstro possui uma construção impressionante. Embora o título nacional o descreva como uma “bruxa”, e algumas menções no filme apontem para esse caminho (o site Witchipedia visitado pelo garoto, o bilhete de Mallory), o inimigo possui uma configuração mais complexa. Os diretores Brett Pierce e Drew T. Pierce concebem uma figura animalesca, bastante física, misto de assombração (a forte maquiagem, a sobrevivência milenar), parasitismo (as referências diretas ao Alien de Ridley Scott) e brutalidade animal (a criatura se assemelha a uma fera selvagem, acuada). Esta personagem se apodera de crianças e bebê, ainda que demoremos para compreender seus objetivos com as vítimas sequestradas. A entidade se apodera sobretudo de mulheres, tornando-as maquiavélicas, mas também fortes e persuasivas. Maliciosamente, o projeto transforma as mães nas ameaças mais perigosas aos próprios filhos. Sem entregar todo o desenvolvimento da vilã, basta mencionar uma importante fenda na árvore (onde são guardadas as crianças, num retorno ao útero) e a capacidade de fazer com que as pessoas se esqueçam das vítimas. Mais perverso do que matar um bebê seria raptá-lo de modo que não faça falta a ninguém. O monstro representa um excelente metteur en scène.

Os diretores possibilitam ao natural e ao sobrenatural conviverem de maneira improvável, porém criativa. Os maridos e namorados alienados jamais percebem que as companheiras se tornaram figuras possuídas, associando o novo comportamento à libido aflorada. Bela ideia de permitir às mulheres esquecerem os filhos e se concentrarem no próprio prazer, fazendo sexo quando bem entendem. Ao mesmo tempo, preservam a aparência externa de benevolência e o benefício da dúvida associado ao “instinto materno”. Visto que Ben não se interessa completamente por mulheres (vide a relação com Mallory), ele se converte na única figura masculina lúcida em meio a uma cidade de homens castrados, zumbificados (a construção patética do vizinho), facilmente manipuláveis. No centro desta história de terror existe uma provocação sobre os gêneros e o embate entre gerações. Não por acaso, segundo esta fábula, 35 anos atrás eram os homens que controlavam a fera, e nos tempos contemporâneos, são as mulheres que detêm o poder.

A Bruxa da Casa ao Lado preserva alguns vícios típicos do terror comercial, a exemplo dos jump scares e da timidez excessiva do monstro, que prefere aparecer diante de câmeras do que pessoalmente (a cena da “babá eletrônica”). Entretanto, estes tiques jamais dominam a narrativa. Parte considerável dos filmes de terror busca intensificar o medo pela saturação de clichês e pelas aparições cada vez mais frequentes da assombração. Neste caso, o inimigo preserva o mistério, enquanto sustenta um modus operandi coerente da primeira à última cena (sobretudo na última cena). Os irmãos Pierce não apelam à superexposição da figura maligna, concentrando-se no ponto de vista do adolescente. Rumo à conclusão, introduzem uma guinada inesperada, porém plausível, capaz de tornar nosso herói menos infalível e mais humano. A descoberta sobre a sexualidade e a monstruosidade das mulheres serve de metáfora ao crescimento deste jovem, descobrindo um mundo no qual sua força física não importa, e seu pênis será ridicularizado pelos colegas. Ao final, quem realmente possui “instinto materno” é o garoto, protegendo as crianças face a uma cidade de amnésicos. A representação da vida adulta soa mais assustadora do que qualquer bruxa.

O diretor de fotografia Conor Murphy contribui à paranoia ao privilegiar lentes teleobjetivas, permitindo tanto o flagra da vida alheia quanto o possível erro de julgamento (acentuado pelos planos em contraluz). É sintomático que a casa vizinha seja observada de longe, e que a câmera jamais se aproxime das partes internas, exceto por detalhes do porão. Os diretores preferem exercitar a imaginação do espectador a revelar demais. O trabalho de Murphy se destaca sobretudo na cena do “parto” simbólico na árvore. A construção pode soar exagerada e kitsch, no entanto, os diretores possuem a ousadia de manipular símbolos, desprezando as banais inscrições malignas em árvores e máscaras de caveiras (esquecidas rumo à conclusão) para oferecer imagens muito mais potentes, a exemplo das vísceras de um animal morto e de uma mão macabra saindo dentro de outra mão, humana e saudável. A dupla de cineastas parte de elementos reconhecíveis para subvertê-los e ressignificá-los, dentro de uma história que, para a nossa surpresa, também funciona enquanto romance adolescente e coming of age story.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *