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Sinopse

Doze pessoas acordam num campo não identificado. Completamente desconhecidos, eles sequer sabem como foram parar nesse lugar. A única informação que todos recebem é que farão parte de uma perseguição de vida ou morte.

Crítica

A priori, não é problemático que A Caçada seja aferrado a uma tese. Vários grandes exemplares do cinema são construídos com o intuito de sustentar certa ideia, de apresentar uma visão de mundo bastante específica ou de entender fenômenos a partir de determinado prisma. Todavia, o que incomoda, sobremaneira, na narrativa construída por Craig Zobel para “provar” que os extremos de uma polarização possuem naturezas similares, no fim das contas, é a recorrência grosseira ao maniqueísmo. A palavra “filantropo” observada durante a troca de mensagens no começo do filme evidencia que a comunicação está se dando entre um grupo de endinheirados. Estes acham divertido falar sobre caçar humanos. Segue-se certo mistério, com os membros proeminentes de suas comunidades assassinando alguém que acordou na hora errada num translado de jatinho. As conversas sobre caviares e champanhes caríssimos voltam a assinalar a classe social a qual os sádicos pertencem. Eles levam desconhecidos ao descampado, os armam e começam a assassina-los à distância, sem qualquer contato.

Mas Zobel tem uma carta na manga. Em princípio, espera-se que a moral da história tenha a ver tão e somente com os efeitos fatais do elitismo. De um lado, os ricos que matam porque o poder conferido pela superioridade financeira lhes parece ilimitado. Do outro, pessoas aleatórias que seriam entendidas dentro dessa lógica doentia como absolutamente descartáveis. Em Bacurau (2019), filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, meia dúzia de norte-americanos é posta deliberadamente nesse registro, mas a partir de uma lógica xenófoba pela reivindicação de um “direito” perverso de exercer a sua suposta superioridade racial. Dentro daquele universo faz todo o sentido, inclusive, a constituição dos arquétipos. Porém, em A Caçada existe outra camada bem importante: a hipocrisia. O discurso progressista dos milionários matadores gradativamente colide com as falas preconceituosas dos perseguidos. Porém, uma vez deflagrada essa pretensa inversão entre as vítimas e os algozes, o filme se resume a um banho de sangue (às vezes criativo) entremeado por reafirmações dessa lógica inesperada. Subestimando a perspicácia do espectador, o roteiro coloca incessantemente da boca dos “caçadores” sentenças entendidas como politicamente corretas, bem como estofa as manifestações dos "caçados" com conteúdo nojento, assim martelando uma tese muito questionável.

Mais que a discussão social permitida por essa aparente contradição, chama a atenção a incapacidade de deixar entrelinhas e subtextos sem preenchimento e/ou explicação. Afora aderir a ou rechaçar esse entendimento restrito da coletividade norte-americana como um simplório embate de irascibilidades insuspeitadamente análogas, sobressai a intenção pedagógica de esclarecer todos os pontos para, inexplicavelmente, evitar compreensões potencialmente divergentes. Um indício gritante disso é o flashback utilizado da maneira mais óbvia possível, ou seja, como mero esclarecedor. Especialmente ao mostrar uma personagem enredada enganosamente (?) para esse torvelinho de agressividade, A Caçada deixa ainda menos a mercê de arestas a dissertação quanto à nocividade de ambos os polos da disputa. Seria bem mais afetiva a assinalação da farsa da responsabilidade dos ricaços se o realizador não evocasse o exagero como signo para torna-la evidente. Esses sujeitos relativamente obscuros se revoltam diante de possíveis sinais de racismo, discriminação e afins, mas não refletem acerca dos próprios privilégios. Todavia, era preciso pontuar tanto?

Com relação aos integrantes do lado politicamente abjeto, transformados em vítima pelas circunstâncias, eles são abatidos ao demonstrarem discursos considerados problemáticos, às vezes bem antes de qualquer manifestação verbal. Em prol dessa tese construída de forma esquemática e desatenta às complexidades, ou seja, tão peremptória quanto a polarização esquadrinhada como uma guerra de nocividades, Craig Zobel acaba esvaziando a dissociação entre discursos e realidade. Também não dá conta de entender a gente transformada em descartável por sustentar enunciados torpes. Portanto, o realizador se coloca confortavelmente na posição famigerada do “isentão”. Atirando para todos os lados, fazendo um mero exame acusatório, assume o ponto de vista da protagonista observada como alguém relativamente emancipada da dinâmica dual. Nessa equação, a violência tampouco é entendida como elemento onipresente na coletividade estadunidense. Afinal, um povo dividido é mais fácil de ser conquistado, não? Para coroar tudo, a discussão sobre fake news aparentemente virando realidade é tão leviana quanto potencialmente moralista. Outro sintoma da radiografia imponderada.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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