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Crítica


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Sinopse

Hatzin viaja para recuperar os restos mortais de seu pai, encontrados numa vala comum. O inesperado encontro com um sujeito muito parecido com o morto desperta esperanças no adolescente que anseia por um milagre.

Crítica

O primeiro conflito deste drama se resolve com inesperada rapidez. O jovem Hatzin faz uma viagem de ônibus, chega ao local onde restos humanos de seu pai foram encontrados, apresenta os documentos, recebe a urna funerária com as cinzas do falecido e retorna ao vilarejo de onde veio, em cerca de dez minutos de narrativa. Fica claro que este não constitui o foco do diretor Lorenzo Vigas. O cineasta aposta numa jornada de coincidências fabulares: através da janela do veículo, por acaso, o menino acredita avistar pelas ruas o pai, vivo, apesar dos restos mortais carregados no colo. Ele desce do ônibus e confronta o sósia, que descarta conhecê-lo. Esta será apenas uma das possíveis coincidências dentro desta aventura de reparação onde os oprimidos terão sua oportunidade de se tornar opressores, e os desaparecidos ressurgem enquanto conhecidos ocupam seu espaço. Em outras palavras, Hatzin habita uma história maior do que seu caso específico: ele claramente representa todas as famílias em posição semelhante, vítimas de crimes sem solução e do abandono parental. O menino se converte em símbolo, um porta-voz involuntário da causa.

O drama aproxima seu protagonista de um cachorrinho abandonado, persistente, do tipo que famílias impiedosas deixam em algum lugar distante para esquecer o caminho de casa, e mesmo assim efetua o trajeto de volta aos braços que não lhe acolhem. O adolescente possui um caráter respeitável em sua resiliência, porém martirizado na busca desesperada por afeto. Ao longo das diversas rejeições e insistências, o roteiro revela o mistério que realmente pretende abordar: o sujeito identificado como figura paterna (interpretado por Hernán Mendoza) seria o pai real, ou um anônimo semelhante no qual o garoto projeta seus anseios pela incapacidade de realizar o luto? Apesar de carregar as cinzas consigo, numa materialidade total da morte, prefere acreditar na fantasia de sobrevivência do indivíduo que o abandonou. De cara fechada, poucas palavras e senso inabalável de convicção, ele se cola ao adulto, deixando-lhe pouca alternativa, exceto acolhê-lo em seu trabalho, onde recruta mão-de-obra de baixa qualificação para trabalhos pesados em usinas têxteis. O ator encarna o protagonista com uma teimosia apática, sem relevo nem dúvidas. De olhar firme e boca fechada, segue pelo caminho que lhe parece o único possível.

A Caixa (2021) surpreende ao se apropriar de um drama familiar por um prisma fatual, até mesmo frio. O contato com a urna do pai não provoca qualquer dor ou melancolia no herói, assim como as humilhações e o desprezo do possível pai são tolerados. Esta é uma história de morte, assassinato e exploração sem lágrimas, e sobretudo, sem piedade. A partir do instante em que abraça a tese do pai postiço, Hatzin deixa de se importar com a vó idosa na cidade natal, e perde o interesse por qualquer elemento de conexão (amigos, vizinhos, escola, igreja) no local de origem. Generoso, o roteiro permite que ele dedique dia e noite à tentativa de aproximação, sem problemas de dinheiro, sem perseguição policial, e sem cair em contradição nos atos ilícitos que vem a praticar sob tutela do protetor. O universo ao redor se interrompe para que o menino pratique sua obsessão, cercado por coadjuvantes definidos pela importância em relação a Hatzin: o suposto pai, a esposa deste, a colega da usina, a mulher que denuncia o trabalho forçado e talvez exponha o esquema de corrupção. As cenas, os conflitos e as imagens ocorrem para o protagonista, em função dele. Nenhuma figura secundária possui dilemas dissociados do papel do viajante.

A estrutura bastante clássica se concretiza por meio de uma direção sólida e competente, apesar de pouco ousada. A câmera adota o preceito de seguir Hatzin por onde for, colocando o espectador na posição de cúmplice onisciente. Estamos com ele quando caminha durante quilômetros na terra e na neve; quando comete seu primeiro crime para provar a lealdade ao líder; quando se esconde atrás de caminhões e testemunha o discurso contestador de uma operária. Por isso, torna-se fácil a identificação com o garoto calado e pouco expressivo, mesmo sem pulsões sexuais, objetivos para o futuro nem passatempos. Compreendemos este corpo em perpétuo movimento por sua obstinação a partir de uma premissa universal: a procura pelo pai. Vigas privilegia imagens estabilizadas, uma bela e discreta luz natural, e planos de profundidade infinita, permitindo descobrir a amplitude destes espaços e a pequeneza do menino diante do cargo que passa a desempenhar. Hatzin enfrenta estruturas literalmente muito maiores do que si próprio, e somente passará a questionar sua função neste universo quando será o algoz de um desaparecido. Neste instante, ele deixa de provar sua capacidade ao homem que lhe acolhe a contragosto, para compreender seu papel enquanto peça de uma estrutura social ampla. 

O roteiro se encerra de maneira satisfatória, quando cada símbolo é retomado e ressignificado: a urna funerária, o caminhão, o ônibus, a pá. A potente composição da trilha sonora ameaça transformar o projeto num suspense, algo que nunca se concretiza por completo. A jornada se encerra de maneira circular, sem revolucionar o sistema abusivo, nem se render a ele. Em termos de construção de personagens e posicionamento político, trata-se de um texto exemplar, do tipo que poderia ser estudado em escolas de cinema: “Em 15 minutos, é introduzido o conflito central, quando o herói é chamado à aventura, e então…”. Em contrapartida, talvez falte vigor a este cinema polido, onde as figuras humanas se encontram no terço exato do enquadramento onde esperaríamos encontrá-las, agem de maneira levemente amoral, mas depois se retratam a tempo de não perdermos a adesão por elas. A obra se ressente de ambições visuais, metáforas menos explícitas do que a caixa do título, ou uma textura e um volume psicológico nos arquétipos centrais. Esta pode ser uma boa maneira de aliar o público médio aos críticos, evitando sacrificar a profundidade do tema em nome da acessibilidade. Entretanto, o tema do luto permite uma infinidade de estímulos e poesias que o cinema tem abraçado historicamente com gosto, mas Vigas, rígido e eficaz, prefere evitar. Como resultado, experimenta-se uma obra tão correta quanto pouco arriscada, perdendo a oportunidade de representar pela forma a violência das relações familiares e trabalhistas.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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