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Sinopse

Deputadas fazem política nas entranhas do parlamento brasileiro. Vêm à tona temas como direitos reprodutivos, educação, racismo, estado laico e, claro, a polarização política.

Crítica

A Câmara é um daqueles filmes que demoram um pouco a engrenar, em parte porque mantém indefinido seu principal objeto de interesse e observação. A câmera passeia pelos corredores do Congresso Nacional em busca das mulheres parlamentares que fazem parte da instituição ainda esmagadoramente ocupada por homens. Em princípio, parece que a curiosidade transcenderá os espectros políticos, uma vez que são brevemente acompanhadas deputadas das alas tanto da esquerda quanto da direita, sem um foco definido ou escancarado. Benedita da Silva é observada sendo assediada por grupos em busca de assinatura às suas causas ou mesmo convidada a usar adesivos que denotem adesão às reivindicações de classes. Disso se vai para outras personagens, mas em situações bem menos peculiares, às vezes até mesmo em ocasiões que não parecem ter muito a dizer e manifestar. Aos poucos identificamos que o documentário é sobre o contingente feminino da instituição, mas nem sempre colocando o masculino como oposição indicativa de uma disparidade de forças. Aliás, o machismo surge em sua faceta mais desavergonhada quando políticas de esquerda exercem a sua função parlamentar, como nas vezes em que Maria do Rosário tenta desvendar os planos cínicos de uma direita que banaliza pautas importantíssimas.

Dirigido por Cristiane Bernardes e Tiago de Aragão, esse longa-metragem selecionado à Mostra Olhos Livres da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes utiliza o princípio da invisibilidade. Em apenas um momento o dispositivo é “denunciado” por um personagem – aliás, cena grotesca na qual um pastor-deputado acredita estar falando para os eleitores de uma colega “terrivelmente evangélica”, parafraseando o ex-presidente Jair Bolsonaro. No mais das vezes, a câmera busca não ser uma presença intrusiva, capturando conversas ao pé do ouvido e episódios da intimidade das parlamentares, como quando observa Sâmia Bomfim amamentando depois de espinafrar um adversário político que tinha distorcido as complexidades de uma pauta de costumes. Mas, de fato, A Câmara ganha relevância ao colocar no centro da imagem as mulheres empossadas pela parcela conservadora do eleitorado, pois cria a partir do testemunho de seus cotidianos um curto-circuito interessante. Como na vez em que a deputada repete na mesa de uma comissão parlamentar justamente aquilo que tinha dito à equipe no trajeto de automóvel rumo à Câmara – o que denuncia um discurso pronto. Ou mesmo no instante em que uma deputada direitista asfixia agressivamente a contestação do colega, fazendo valer a sua posição de presidente de determinada comissão para calar o seu adversário político que ainda tenta preservar a civilidade.

Mantendo-se fiéis ao testemunho pouco intrusivo daquela realidade específica dos bastidores do poder, A Câmara propõe algumas rotas, mas encontra seu verdadeiro caminho somente quando captura a atuação das deputadas direitistas. Implicitamente, fica a sensação (oriunda de uma tese que evidentemente norteia os realizadores) de que essas mulheres acabam agindo contra os interesses femininos, pois estão capturadas pelos discursos tradicionais que refutam qualquer ímpeto de emancipação verdadeiro. Por mais que as deputadas, hipoteticamente, gozem dos mesmos benefícios que os colegas homens, elas servem ao discurso de um mundo machista repleto de estratégias para manter centralizado o verdadeiro poder. No entanto, Cristiane Bernardes e Tiago de Aragão não aproveitam essas constatações para dar um rumo ao documentário, a isso preferindo pequenas mudanças de itinerário que pretendem conferir outros matizes ao retrato, mas que acabam apenas por o tonar vago e pouco contundente. Exceção feita a alguns flagrantes importantes para compreendermos as entranhas de uma das instituições mais poderosas do Brasil, vide quando uma deputada transforma a plenária num culto evangélico (nesse estado supostamente laico) e termina a sua fala típica de líder religiosa com a sentença: “missão dada é missão cumprida”, máxima de Tropa de Elite (2008). Significa.

Oscilando entre momentos banais e outros que contém indícios de tensões políticas e de gênero, A Câmara é um panorama vago da atuação feminina na Câmara Federal dos Deputados. Alguns assuntos aparecem esporadicamente como candidatos a vetores do discurso, mas acabam rapidamente sendo substituídos por outros de importância e efetividade questionável. Por exemplo, em alguns momentos reaparece em pauta o caso da menina de 11 anos, moradora de Santa Catarina, cujo pedido de aborto negado pelo judiciário transformou seu sofrimento em palco para outra batalha entre conservadores e progressistas. Cristiane Bernardes e Tiago de Aragão dão a entender que utilizarão esse assunto como um grande ponto de partida para, inclusive, evidenciar divergências entre deputadas de campos políticos antagônicos. Porém, isso não acontece, sendo o caso mais um dos temas insuficientemente elaborados numa trama repleta de possibilidades exploradas com certa negligência. As partes contundentes são as melhores, sobretudo porque escancaram a extrema dificuldade de diálogo entre ideologias opostas – a deputada que invoca a arte da conciliação diante da câmera age de modo beligerante. Pena o filme demorar a encontrar sua vocação e definir, precisamente, a que veio.
Filme visto na 27ª Mostra de Cinema de Gostoso, em janeiro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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