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Sinopse

Beth está traumatizada pela morte recente do marido, que cometeu suicídio. Enquanto fica sozinha em casa, a professora ainda sente a presença dele chamando por seu nome. Ao arrumar as roupas e objetos do falecido, descobre segredos que a fazem duvidar da identidade do homem com quem se casou.

Crítica

O que existe depois da morte? A pergunta fundamental às religiões, e muito instigante para a ciência, serve como motor central de A Casa Sombria (2020). Por um lado se encontra Beth (Rebecca Hall), professora que “já morreu”: durante um acidente na juventude, seu coração parou durante alguns minutos, antes de ser reanimado. Quando as pessoas lhe perguntam o que enxergou no além-vida, ela promete que “não há nada”. “Não existe luz no fim do túnel, apenas o túnel”, garante. A personagem representa o ceticismo e o niilismo, em oposição ao marido Owen (Evan Jonigkeit), que acredita em alguma forma de eternidade. Ambos testam a experiência da finitude à sua maneira: ela se aprofunda numa depressão e sustenta pensamentos a respeito do término. Já ele passa aos fatos, eliminando a própria vida com um tiro na boca. “A depressiva era eu!”, argumenta a viúva, incrédula com a atitude inesperada. O falecido lhe deixa um bilhete desprovido de sentimentos: “Você tem razão. Não há nada depois de você” - em inglês, a frase “there is nothing after you” também se presta à leitura “não existe nada atrás de você (te perseguindo)”. O casal melancólico, que optou pela construção de uma casa isolada e surpreendentemente escura no meio da floresta, apaixona-se pela ideia do fim a ponto de ser tragado por ela.

O filme se inicia de maneira eficaz. A tragédia de Owen é explicada sem palavras, bastando as imagens da casa vazia e a insistência nos álbuns de retrato. Os lencinhos de papel perto da cama indicam o choro recente; a quantidade de álcool à disposição remete a uma dor profunda. A surpresa no rosto dos colegas de trabalho ao verem Beth na escola dá a dimensão exata da repercussão do caso. Ao menos na primeira metade, o diretor David Bruckner acredita em sentimentos e ações construídos sem diálogos - afinal, estando sozinha em casa, com quem a heroína conversaria? Rádios ligam sozinhos, barulhos a acordam lá fora, pegadas surgem à beira do lago. Resiliente, a mulher se convence de que estaria cansada, imaginando coisas. O roteiro passa a apostar na figura dos duplos para discutir a depressão: Beth tem a ilusão de que existe outra casa idêntica à sua do outro lado do lago, e de que o ex-marido estaria saindo com uma garota parecida consigo mesma. As margens do rio soam idênticas, de modo que a montagem passa a ignorar a travessia nas águas conforme a professora viaja de barco, confundindo o espectador: de que lado do espelho se encontra esta Alice? O cineasta abraça o fantástico ao desenhar duas luas se dissociando: uma de aparência comum, e a outra, de cor vermelho-sangue, eclipsada pela primeira.

Os principais méritos da produção decorrem da compreensão que, por trás dos vultos e sussurros, existe um drama realista. Rebecca Hall oferece uma composição excepcional por compreender as nuances deste estado emocional. Diante de um suicídio, a protagonista sente raiva, indignação, tristeza, culpa, remorso. Como não havia percebido essa tendência antes? Poderia tê-la evitado? Como Owen teve coragem de deixá-la sozinha? A professora alterna entre o cinismo, o comportamento passivo-agressivo e a fragilidade. Há espaço para risadas, autoironia e instantes de constrangimento na sala de aula e no bar. Confrontada à possível transformação do falecido em fantasma, ela hesita entre ter medo, esperança ou desconfiança. A maioria das produções de terror relega aos familiares de pessoas mortas a condição de seres chorosos e cabisbaixos, mas A Casa Sombria compreende o luto enquanto processo de múltiplas fases. Uma possibilidade, diante das inúmeras reviravoltas fantásticas a seguir, diz respeito à interpretação da história como pura representação da perda, quando a esposa precisa criar suas ficções para dar um desfecho apropriado ao casamento interrompido. Os conflitos improváveis se justificariam pela incapacidade da mulher em aceitar a situação.

Infelizmente, a narrativa se perde bastante conforme caminha à conclusão, sobretudo no terço final. É preciso desconstruir o conceito popular de que um bom terror seria aquele com alguma reviravolta inesperada na conclusão, segundo a escola M. Night Shyamalan de manipulação da espectatorialidade. Bruckner possuía conflitos suficientes através da psique caótica de sua personagem. No entanto, encadeia revelações espetaculares e incoerentes. As surpresas surgem sem justificativa plausível: exceto pela teoria do “era tudo uma metáfora, uma produção simbólica de Beth”, torna-se improvável encontrar qualquer amparo no mundo real para sustentar as descobertas da esposa. Símbolos são desprovidos de aprofundamento (a estátua torturada); uma pulsão destrutiva se insere de modo abrupto; a construção da casa escondida remete aos contos de fadas. Partindo de um conflito plausível, o longa-metragem mergulha progressivamente no faz de conta. A magia poderia surgir de modo orgânico caso possuísse um modus operandi consistente - a aparição agiria sempre da mesma maneira, de acordo com regras predefinidas, atrás de um objetivo fixo (caso de O Homem Invisível, 2020, com o qual esta produção guarda semelhanças). Entretanto, a criatura se contradiz: começando na invisibilidade, adquire corporeidade. Após anunciar um intuito preciso, modifica-o ao longo do processo. Adiante, permite uma absurda troca de identidades.

A Casa Sombria se encerra como um belo drama, porém um terror fraco. Exceto pela complexa protagonista, que monopoliza as cenas, o mundo ao redor se reduz à caricatura: a melhor amiga aparece apenas para ajudar Beth, sustentando a expressão única de piedade (numa fraca atuação de Sarah Goldberg). O vizinho Mel (Vondie Curtis-Hall) repete o estereótipo do negro místico que tudo vê; e a talentosa Stacy Martin se prende a um papel minúsculo, logo abandonado quando o roteiro não sabe o que fazer com ela. Famílias estão ausentes; burocracias relacionadas à morte são ignoradas; o trabalho na escola é esquecido. O próprio marido, quando aparece em flashbacks ou sonhos, possui uma construção apática - a câmera está mais interessada no corpo musculoso do falecido do que em suas motivações. O ápice deste descaso se encontra na sequência em que o inimigo confessa seus objetivos. O filme não sabe como chegar a esta descoberta por meio de alguma investigação de Beth, por isso, a certa altura da trama, suspende a charada e se explica - a exemplo de um mágico que, abruptamente, revela seus segredos para encerrar o espetáculo. Ao menos, a cena final efetua uma ponte importante com as cenas iniciais através da ideia de que “não há nada” para além daquilo que nossos olhos veem. Estripulias narrativas à parte, o projeto oferece boas provocações a respeito da fé e do conhecimento.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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