Sinopse
Crítica
Embora o título se refira a uma personagem, A Censora tem duas protagonistas. A primeira delas é Iryna (Iryna Kiryazeva), a trabalhadora de uma prisão feminina em Odessa, na Ucrânia. Entre outras coisas, ela lê as cartas das detentas e censura determinadas partes antes de elas chegarem às destinatárias. A outra é Lesya (Maryna Klimova), jovem que acaba de dar à luz ao seu primeiro filho nesse cárcere caracterizado, justamente, por conter várias presidiárias-mães que convivem com as suas crianças até elas completarem três anos. Lesya está condenada a sete anos de reclusão, mas, quando o seu menino chegar ao terceiro aniversário, será obrigada a se separar dele. Das duas uma: ou algum parente assume a guarda do menor até a soltura de Lesya ou ele será entregue para a criação num orfanato. Ao acompanhar o cotidiano entrelaçado dessas duas mulheres distintas, mas atravessadas por lógicas e noções semelhantes, o cineasta Peter Kerekes faz uma mistura curiosa entre processos ficcionais e documentais. Mas, não apenas isso. Ele também mescla a aspereza do lugar e do cumprimento da pena com certa leveza, vide as interações da carcereira com a mãe dela, que lhe cobra uma vida social mais agitada, relacionamentos amorosos, uma maior expansividade e, de quebra, alguns netos.
A Censora não é uma comédia, mas prevê graciosidade nesse dia a dia marcado por encarceramentos e despedidas entre mães e filhos. Antes de se focar nas relações prestes a serem rompidas, Peter enfatiza que boa parte dos crimes cometidos pelas apenadas tem a ver com o comportamento dos maridos/namorados. A presença masculina no filme é restrita a esse extracampo construído a partir dos depoimentos das sentenciadas. Os testemunhos dão a impressão de estarmos assistindo a um documentário clássico, pois se tratam, basicamente, de mulheres olhando para a entrevistadora (a carcereira) e contando as suas histórias. Os homens também surgem fora do quadro como as vozes das cartas que Iryna precisa ler antes de encaminhar às suas destinatárias. E entre algumas declarações de amor, há vários clamores non sense por sexo na correspondência. “Meu pau está chorando de saudade”, diz uma delas. A ausência masculina reforça o isolamento das jovens que precisam lidar sozinhas com tudo. Nesse universo feminino há muita sororidade, haja vista a censora/carcereira que não atua como carrasca diante das pessoas que precisa administrar. Pelo contrário, pois Iryna demonstra um imenso senso humanitário que contradiz os lugares-comuns geralmente atrelados a esse tipo de profissional. É fino o equilíbrio entre a frieza e o calor, entre melancolia e esperança.
No entanto, há alguns elementos decepcionantes em A Censora. Um deles é exatamente a dinâmica da leitura prévia das cartas. Elas servem apenas para duas coisas: uma, aumentar o vínculo entre Iryna e as detentas, de quem a censora passa a conhecer melhor os infortúnios; duas, ser um componente expositivo, de certa forma complementar aos testemunhos das presas, já que somando essas circunstâncias o espectador também passa a saber um pouco mais sobre elas. Não há qualquer conflito por causa da leitura antecipada das cartas. Quanto à Iryna fora da cadeia, a vemos tentando interagir socialmente numa reunião de escola, conversando com a mãe demandante e insistente, mas ela tem a sua personalidade definida no exercício profissional. Iryna mora na cadeia, ou seja, também está “presa” naquele espaço insalubre. E isso amplia a sua conexão emocional com as sentenciadas. Talvez o grande problema do que Peter Kerekes propõe como percurso é um ligeiro simplismo na construção dessas pontes entre as personagens e alguma previsibilidade. O dilema de Lesya sobre a guarda de seu filho não tem uma carga apropriada de tensão e dramaticidade porque o realizador praticamente antecipa pelo caminho o que vai acabar acontecendo. Mesmo assim, o filme preserva um charme pontiagudo.
As cenas mais bonitas de A Censora são as exceções que fogem à regra expositiva. É a corpulenta Iryna se movendo no apertado cômodo que lhe serve de moradia; é Lesya tirando leite e o desperdiçando na pia; são as crianças brincando sem supervisão; são mãe e filha se banhando entre a mesma ladainha de sempre e os silêncios. Mas, a cena mais bela/dolorosa é a do filho de Lesya desorientado porque acabou de perder o melhor amiguinho cedido à adoção. A câmera segue o menino pelo espaço de brincar, enfatiza a sua decepção ao abrir o armário e não encontrar o colega/irmão, e logo depois testemunha a frustração infantil expressada como um choro que mistura inconformidade e incompreensão. A questão documental do filme passa, basicamente, pelo registro de como funciona a penitenciária, de que protocolos todas ali precisam seguir para conviver com o sofrimento e a penitência. Peter Kerekes não cai no lugar-comum das tensões aumentando ao ponto de transformar o cárcere num caldeirão, pois aposta na resignação contida e, por isso mesmo, mais internalizada. A cena final na inconfundível escadaria de Odessa, cenário de uma dos instantes mais emblemáticos da história do cinema – em O Encouraçado Potemkin (1925) – é indicativa do tom esperançoso. Na obra de Sergei Eisenstein, o carrinho despenca anunciado a tragédia da criança. Aqui, a descida é mais leve e solar.
Filme assistido durante o 11º Olhar de Cinema de Curitiba, em junho de 2022.
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