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Crítica


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Sinopse

Dono de ideias ousadas, Tito Lucrécio Caro tenta convencer seu amigo Mêmio que estudar em Roma é perda de tempo. Anos depois de retornar exatamente da capital italiana, ele vive uma paixão profunda por Isa.

Crítica

No meio da natureza, o tempo é indeterminado. Ainda que a sinopse de A Chuva Acalanta a Dor situe o começo da trama no ano de 74 a.C., que os diálogos empostados apontem à antiguidade por meio de uma bem articulada teatralização indicativa, o figurino de Lucrécio (Mauro Soares) e Mêmio (Filipa Matta) é nosso contemporâneo. Portanto, há uma confabulação entre a Era vivida e a testemunhada, ainda que a primeira prevaleça em virtude das exasperações do jovem inicialmente convencido de que estudar em Roma é perda de tempo. Posteriormente, quando regresso da capital, ele é tomado por ansiedades que parecem lhe turvar a existência. O cineasta Leonardo Mouramateus promove habilmente um diálogo muito interessante entre teatro e cinema, não permitindo que haja uma hierarquização nessa dinâmica, mas fomentando a intermediação. De modo semelhante, o racional e o emocional (espiritual?) conversam, às vezes frontalmente, noutras obliquamente. Isso, haja vista as imagens paradoxalmente carregadas de certo rigor despojado.

O Lucrécio antes da viagem (evento mencionado) é vividamente curioso diante das possíveis descobertas da vida, sujeito capaz de confabular, por exemplo, horas a fio sobre a matéria-prima das nuvens. Aliás, na cena em que ele especula acerca da composição do elenco do céu, há um entrecruzamento de perspectivas aparentemente distintas. Fala-se de átomos, dos elementos cientificamente comprovados, mas também acerca da natureza lúdica. Ora esse firmamento carrega a poesia de Ícaro, ora os contornos oferecidos por pensadores como Galileu Galileu. Lirismo e lógica são colocados para dançar na conversa entre os amigos. É sintomático que poeticamente a trama se passe antes de Cristo, num entorno destituído das doutrinas cristãs praticamente sufocantes da dualidade tão fértil e lindamente explorada nesse pequeno filme. Quando retorna, o jovem entusiasmado se apresenta como um ser torturado. Ele vira um indivíduo que não suporta o peso do mundo.

O corpo é um elemento vital dentro dessa elaboração. No começo, é um meio pelo qual “o louco” se expressa. Desnudo, vive em comunhão com a natureza circundante, cenário alheio às possíveis vergonhas de sua desinibição, assim como igualmente o são os personagens não orientados por dogmas religiosos. Lucrécio diz que sente vontade de cagar toda vez que fuma, mas adiante, pós-agitação cosmopolita, há a menção à sua constipação. Dentro do viés que ele oferece às necessidades biológicas, como algo fundamentalmente natural à existência do homem, é como se a disfunção do seu sistema digestivo fosse indício de um desarranjo maior. Sua esposa, Isa (Isabél Zuaa), vivencia os prazeres do sexo, fica indignada quando Lucrécio compara pragmaticamente o gozo ao excremento e chega a bolar um plano mágico para resgatar o desejo aparamente exilado do corpo do jovem desalentado. Há a sinalização simbólica da colaboração essencial corpo/alma.

De certa maneira, A Chuva Acalanta a Dor remete ao epicurismo, grosso modo, o sistema filosófico que prega a imprescindibilidade dos prazeres moderados para atingir tranquilidade e liberação do medo. Leonardo Mouramateus mostra um protagonista modificado pela experiência, cujo resultado é exatamente o embotamento do indivíduo. Diante da impossibilidade de experienciar anseios cotidianos – como a completude de uma vida sexual sadia ou mesmo a placidez de evacuar, tendo assim satisfeitos desejos e necessidades básicos –, ele é destituído de ânimo. Já Isa, plenamente pronta ao júbilo, pensa como devolver ao amado os princípios vitais. Porém, a manobra pode ter seus efeitos colaterais indesejados, embora "controláveis", por conta da imoderação. A jornada simbólica é construída com habilidade por um realizador que, a despeito da juventude, demonstra ter um controle invejável do espaço para entremear tempos distintos e circunscrever o indivíduo como um perpétuo interventor de si próprio frente à dura sina de saber-se finito.

 

Filme assistido online no 14º Cine Esquema Novo, em abril de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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