Crítica
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Sinopse
É véspera de Natal, mas nem todos comemoram com suas famílias. Duas travestis tentam conseguir um procedimento cirúrgico clandestino. O dono de um bar abre seu pequeno empreendimento, esperando por clientes; enquanto uma mulher solitária busca um pouco de afeto. Um assassinato reúne os quatro.
Crítica
Desde as primeiras cenas, o espectador é introduzido a um universo de estranhamentos: a janela próxima do quadrado e a intensa granulação relembram o potencial específico do Super 8; os focos de luz intensos e direcionais despertam atenção aos refletores - a exemplo dos filmes de Pedro Costa ou Aki Kaurismaki. Duas mulheres sobem uma escada de aparência infinita, porque cercada por escuridão acima e abaixo. O dispositivo soa ora teatral (os planos fixos, frontais, enquadrando os personagens de corpo inteiro), ora fantástico (a música nos remete a um universo de magias, enquanto os diálogos lembram que estamos na véspera de Natal). De qualquer modo, os cineastas Priscyla Bettim e Renato Coelho rejeitam o naturalismo em prol das texturas, rupturas e intervenções. Ora os personagens quebram a quarta parede e entoam monólogos poéticos diretamente ao público, ora um passeio pelo bairro da Liberdade de madrugada, em preto e branco, remete a uma ficção científica. Para abordar a vida de quatro pessoas à margem - duas travestis, uma mulher solitária e um imigrante africano -, busca-se uma forma equivalente de marginalidade estética. Por este ponto de vista, seria inadequado abordar experiências de vida extremas através de uma linguagem convencional.
Para os espectadores cinéfilos, o projeto é recheado de referências culturais: a conversa na moviola da Cinemateca Brasileira; a reprodução da clássica Pietá; trechos de Limite (1931), de Mário Peixoto; a homenagem a Luiz Rosemberg Filho; a sobreposição de diálogos em voz over, herdeira de A Idade do Ouro (1930); além de menções aos procedimentos do Cinema Marginal dos anos 1970. Estes recursos podem soar acessórios, ostensivos demais, convertendo-se em pura ferramenta retórica - uma piscadela a quem puder reconhecê-los. Entretanto, a iniciativa é bem-vinda ao cogitar uma atualização deste conceito - em tempos digitais e novo contexto de opressão política, o que seria um “cinema marginal”? Os mesmos grupos de antigamente são aqueles excluídos hoje? Podem reagir de formas equivalentes? Os autores respondem a essa indagação com novas perguntas: eles elaboram uma obra de buscas, como se estivessem, por si próprios, refinando os conceitos enquanto criam. Neste percurso, abraçam inúmeros recursos de textura da imagem, mudanças bruscas de luz, dissociação de som referente, fragmentação da montagem. Assim, atingem um cinema de vigor impressionante, repleto de imagens belíssimas e muito expressivas. Longe da procura por reconfortar o público, provocam os sentidos do espectador ativo, estimulando a reorganização dos sentidos que se embaralham à nossa frente.
Os cineastas despertam um efeito inesperadamente afetuoso para um filme tão radical. As deturpações da forma poderiam provocar uma apreciação racional do gesto - caso em que se admiraria o conceito, a iniciativa, em detrimento das sensações -, porém Bettim e Coelho jamais perdem de vista o aspecto humano desta narrativa de assassinato e luto. Eles elaboram tanto um filme de amizades quanto uma visão melancólica da cidade de São Paulo. A exclusão deixa de ser espetáculo, denúncia ou tema de estudo para se converter em forma. A representação de travestis e imigrantes impressiona por ultrapassar estas categorias - o texto nem minimiza o peso da origem e da identidade de gênero na subjetividade dos personagens, nem os instrumentaliza como bandeiras de uma causa específica. A Cidade dos Abismos (2021) toma o tempo de construir os dilemas do quarteto composto por Verónica Valenttino, Sofia Riccardi, Carolina Castanho e Guylain Mukendi, em atuações homogêneas - ninguém apresenta um registro acima ou abaixo dos demais. O grupo se lança numa jornada onírica que borra os limites do tempo: não sabemos ao certo se eles se conhecem há poucas horas, ou há anos.
Para a nossa surpresa, este filme de gêneros começa a investir na estrutura policial, com fragmentos de noir, de suspense, de delírio performático e de rape and revenge film - ou, neste caso, um filme de assassinato e vingança. A premissa da investigação costuma reforçar relações de causa e consequência: uma pista leva à outra, que conduz a uma nova descoberta, até se encontrar o paradeiro dos responsáveis. Aqui, em contrapartida, as associações permanecem fluidas, etéreas: move-se de um cenário ao seguinte quase por acidente ou inércia, remetendo à deambulação típicas das produções de Ozualdo Candeias, por exemplo. A realização do luto coincide com o empoderamento travesti, o orgulho das religiões de matriz africana, e o pertencimento à comunidade (vide a bela cena com o Padre Júlio Lancellotti). A procura pelos autores do crime não monopoliza a narrativa, apenas aponta direções onde os heróis podem seguir. Trata-se de uma perseguição lenta, contemplativa, nostálgica. As dores e amores se traduzem em elaborações poéticas, incorporadas de modo orgânico ao filme: “Viver é uma queda horizontal”, "Não sou de lugar nenhum, eu sou de todos os lugares”, “As cidades não existem, só os encontros são reais”, afirmam os diálogos. Mais do que frases de efeitos, constituem elementos de reflexão oferecidos ao espectador.
A Cidade dos Abismos se encerra numa festa - ou, pelo menos, em sua versão particular de uma festa fantasmática e performativa. Esta é uma excelente conclusão para a obra de profundo impacto visual, narrativo e filosófico. Em seu primeiro longa-metragem, Priscyla Bettim e Renato Coelho demonstram coragem para manipular a linguagem de formas radicais, embora mais acessíveis ao público médio do que os projetos que costumam se autointitular experimentais. Em consequência, produzem um drama memorável, capaz de se destacar em meio à enxurrada de festivais que dominam as plataformas online. A dupla sustenta um posicionamento firme quanto ao mundo e ao cinema, como se espera das novas vozes. Acima de tudo, permitem que a imagem supere a ilustração do roteiro e a promoção de uma ideia preconcebida - a matéria fílmica constitui um tema em si mesma. Algumas cenas serão consideradas melhores ou piores que as seguintes, como convém à aposta em múltiplas formas narrativas. Esta pluralidade deve suscitar bons debates pós-sessão, despertando paixões por uma ou outra sequência, levantando dúvidas a respeito dos limites da representação - seria eticamente problemática a cena dos anônimos catando lixo na rua? O cinema mais instigante é aquele que não se encerra em si mesmo, impregnando o espectador com estímulos e reflexões que carregará após a sessão.
Filme visto online no 10º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 9 |
Arthur Gadelha | 10 |
Francisco Carbone | 9 |
Alysson Oliveira | 8 |
MÉDIA | 9 |
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