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Crítica


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Sinopse

Um diretor de cinema enfrenta uma situação complexa no meio da produção de seu longa metragem: a autora de "Os Piratas do Tietê" começa a rejeitar os personagens quando o enredo está praticamente pronto. Para tentar salvar o filme, ele decide contar a sua história e realidade e ficção se misturam em um caótico labirinto.

Crítica

A Cidade dos Piratas, tal e qual projetado na telona, é fruto de uma impossibilidade, logo incorporada ao enredo tresloucado capitaneado pelo cineasta Otto Guerra. A ideia original era fazer uma animação dos famosos Piratas do Tietê, personagens criados pela cartunista Laerte Coutinho. Todavia, quando a produção estava em processo adiantado, a artista recuou, avisando Otto de sua falta de disposição para voltar aos tipos por ela gestados nos anos 80, alegando considera-los atualmente machistas. O processo de reconfiguração da obra se tornou, então, parte da narrativa. O próprio Otto surge no longa-metragem como aquele que busca alternativas viáveis, tentando tocar o projeto adiante, a despeito do revés que parece gerar um beco sem saída. O resultado é uma sucessão de camadas que se entrelaçam histrionicamente, evocando um bem-vindo espírito de subversão, condizente com a crítica social que norteia a pronta guinada rumo a observações ferinas.

O Capitão de Piratas do Tietê navega nas águas agitadas da capital paulista, ora atacando imediatos revoltosos, ora se deparando com o poeta Fernando Pessoa, que declama versos, com isso enfrentando liricamente a feiura do entorno. Ocasionalmente, Laerte aparece, em carne e osso, para comentar coloquialmente determinadas conjunturas, especialmente as que tangem à mudança que a fez tornar-se mulher, motivadora de burburinhos. Essa instância serve de combustível a várias manifestações. O minotauro de apenas um chifre é criminalizado por um político que se intitula líder da bancada revolucionária conservadora, paradoxo amplamente explorado pelo realizador. É evidente o espelhamento diegético de figuras notórias e reais nesse odioso bravateiro que constantemente ataca os homossexuais e as manifestações de liberdade. Dublado por Marco Ricca, ele tem intensos sonhos eróticos com um grande touro excitado num labirinto.

As instâncias se interpenetram sem uma coerência estanque em A Cidade dos Piratas. Entretanto, dá para dividir a animação em duas frentes. Na primeira, a invenção é o ponto nevrálgico, com elucubrações metalinguísticas acerca do processo que se desvela diante do expectador. Otto Guerra comenta as brigas com a equipe, o desespero diante da dificuldade para levar o conjunto à frente, e chega a retratar parcialmente sua batalha contra o câncer. Dessa forma, o autor modela a verdade, desenhando, assim, uma conexão estreita entre criadores e criaturas. Uma pena que não investigue a ojeriza de Laerte pelos piratas que outrora derivaram de alguma parte sua. É perceptível, vide a interlocução direta entre fantasia e realidade, a vontade de transformar reveses em combustíveis. Na segunda, o núcleo é a observação da intolerância avessa à diversidade como constante social, que marginaliza tudo divergente do padrão canhestro perpetrado pela elite.

A confusão decorrente da justaposição de temáticas e dimensões aparentemente díspares é um efeito colateral menor. O desbragamento tonifica a inconformidade que perpassa A Cidade dos Piratas, distante de algo comportado ou conformado. Na impossibilidade de realizar algo essencialmente sobre os Piratas do Tietê, Otto Guerra cria uma mistura corrosiva de enfrentamento de questões urgentes com reflexões consistentes sobre o ato da concepção artística. Embolando uma releitura anárquica do revide indígena à invasão bandeirante no século XVI e as ofensas à livre expressão sexual infelizmente tão visíveis atualmente, o cineasta ainda coloca nesse molho picante lendas ressignificadas pelo olhar contemporâneo, homens que se vestem de mulheres para realizar programas por prazer, temperando tudo com Laerte em pessoa, acossada por uma mídia bisbilhoteira, tendo sua intimidade devassada publicamente. Um filme que transpira inquietude.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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