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Crítica


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Sinopse

No século XIV, o criado Massetto se envolve com a esposa de seu mestre. Quando o caso é descoberto pelo castelo, o garoto é jurado de morte, e encontra refúgio num monastério vizinho, onde é apresentado como surdo-mudo para diminuir a interação com as jovens freiras. No entanto, não demora para Alessandra, Fernanda e Ginevra se encantarem por ele, e colocarem em risco os votos de castidade.

Crítica

A transposição do romance Decamerão, escrito por Giovanni Boccaccio, de 1353 para o cinema de 2020 constitui um desafio tentador. Afinal, a sociedade mudou drasticamente desde o período medieval, o cinema estava longe de existir, e o texto original, contendo cem contos sobre erotismo e a morte, dificilmente se prestaria a uma adaptação fiel. Uma solução se encontraria na representação historicamente correta dos costumes da época, extraindo o humor da diferença entre a organização social daqueles tempos e a nossa. Outra possibilidade viria da adaptação do romance italiano ao século XXI, atualizando a premissa à contemporaneidade e buscando equivalências para os medos de antes (quais seriam os equivalentes da pandemia de Peste Negra hoje? O coronavírus?). No entanto, o diretor e roteirista Jeff Baena adota uma postura mista: sua trama se situa em 1347, um ano antes do início da escritura do livro, porém os personagens se comunicam como jovens das grandes cidades de 2020.

Esta incompatibilidade de tons constitui o principal motor cômico de A Comédia dos Pecados (2017). O filme basicamente brinca com a oposição entre o sagrado e o profano: enquanto se espera que freiras medievais sejam castas, as protagonistas Alessandra (Alison Brie), Fernanda (Aubrey Plaza) e Ginevra (Kate Micucci) gritam, xingam as pessoas, jogam pedras num gentil agricultor local. “Cuidado, elas são perigosas”, alerta o padre. De noite, roubam o vinho benzido e fazem festas regadas a álcool nos quartos do monastério, enquanto se experimentam a sexualidade entre mulheres, sem qualquer tipo de arrependimento no dia seguinte. O humor nasce de noventa minutos de travessuras de freiras, padres e madres efetuando o exato oposto do que se esperaria deles, sobretudo para as regras das sociedades medievais. No entanto, o teor “politicamente incorreto” desta demonstração se revela muito mais casto do que o imaginado, por apresentar a sexualidade “desviante” como um pequeno experimento, uma brincadeira sem consequências. Não há naturalidade nas cenas de lesbianismo ou embriaguez: o diretor prefere abordá-las com o senso de criança levada, ciente de fazer o que não deveria.

Por limitar estes comportamentos à esfera das exceções, jamais sugerindo que se tornem regra, a comédia evita uma ruptura subversiva com a norma. As freiras de Pedro Almodóvar (Maus Hábitos, 1983) e Tavinho Teixeira (Sol Alegria, 2018) faziam da homossexualidade e das drogas um modo de vida, uma afronta à sociedade. Já as irmãs do filme norte-americano se aproximam das gentis pecadoras de Mudança de Hábito (1992), cujas estripulias jamais visam revolucionar os códigos, apenas se infiltrar silenciosamente por entre as frestas existentes. Ao menos, o diretor tem a coragem de explorar a nudez de seus atores (nos quais se inclui Dave Franco, interpretando o interesse sexual das protagonistas) de maneira tão explícita quanto despreocupada. O cinema norte-americano raras vezes permite a nudez frontal de mulheres com a liberdade desta comédia. Caso Baena investisse igualmente em alguma subversão das formas, chegaria num humor próximo das esquetes do grupo Monty Python, acostumadas a escancarar as ridículas normais sociais. Infelizmente, as imagens de The Little Hours (no original) permanecem comportadas até demais, para não dizer protocolares. Havia farto material para brincar com o código das roupas, acessórios e cenários, mas o cineasta se atém a um naturalismo plácido.

Talvez o melhor atrevimento do projeto provenha do tom dos diálogos. O elenco se expressa como se estivesse numa megalópole atual, ignorando o teor italiano em prol de um americanismo caricatural, seja em termos de velocidade, gírias ou na impostação blasé. Aubrey Plaza, acostumada às interpretações afetadas, empresta os olhos revirando e as falas hipsters a Fernanda, enquanto Kate Micucci atribui certa agressividade às falas da mocinha ingênua, e Alison Brie exagera a doçura de Alessandra ao limite do ridículo. De diferentes maneiras, o trio trabalha os tons de egocentrismo, deboche e sarcasmo incompatíveis com a Idade Média. Em paralelo, a excelente Lauren Weedman rouba a cena nos poucos momentos em que aparece, por trabalhar os diálogos coma brutalidade típica de um espetáculo de stand-up comedy. O filme traz impressionante variação de registros cômicos, que ainda abarcam a doçura das falas de Molly Shannon e o tom assumidamente patético de John C. Reilly. Os atores evidentemente se divertem com as pequenas sugestões eróticas, e parte desse prazer se traduz nas imagens. Na ausência de ambições estéticas, o filme se impregna de um comprometido jogo cênico entre especialistas do humor.

Em termos de ritmo, o resultado se revela muito mais lento e contemplativo do que a média das comédias contemporâneas, sobretudo aquelas focadas no teor sexual. Não existe a insistência de introduzir piadas a cada minuto, como nos filmes de Seth Rogen e Tiffany Haddish, nem a necessidade de picotar a montagem para acelerar a trama. Em estrutura análoga aos programas de esquetes, restam alguns momentos isolados em que o texto e as atuações se orquestram muito bem, a exemplo da confissão de um pecador, explicando ao padre todas as posições sexuais executadas com a esposa de um nobre, e a cena no estábulo, quando o “pobre” Massetto (Dave Franco) é sucessivamente atacado pelas três protagonistas, que se atiram sobre o corpo do rapaz enquanto as demais se escondem ao fundo do enquadramento. Trata-se de um humor físico, de situações, um tanto simples enquanto concepção, porém bem adaptado à duração de uma única cena. Infelizmente, os momentos envolvendo os talentosos Nick Offerman e Fred Armisen não possuem o mesmo controle de direção, diluindo o potencial do texto. Ainda assim, o resultado entretém sem buscar agradar a qualquer preço, algo benéfico ao circuito comercial.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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