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Sinopse

Uma família vive isolada dentro de uma grande propriedade. Certa noite, uma luz rosada aparece no céu e invade a casa. A partir deste momento, o pai, a esposa e os filhos começam a experimentar sensações inesperadas, encontrando-se diante de um inimigo mortal.

Crítica

A sucinta narrativa de A Cor que Caiu do Espaço (2019) constitui menos uma narrativa autônoma do que uma homenagem aos clássicos de terror e ficção científica. O filme baseado no texto de H.P. Lovecraft apresenta uma comunicação com o espaço por meio de luzes, muito próxima da linguagem estabelecida em Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977). A relação entre o garotinho da família e uma criatura aparentemente gentil nos coloca em terreno próximo de E.T. O Extraterrestre (1982), enquanto a transformação da ameaça num ser gosmento que ataca humanos remete aos efeitos especiais e criaturas de O Enigma de Outro Mundo (1982). É surpreendente que o filme do diretor Richard Stanley ocupe 111 minutos para retratar um único conflito: uma estranha luz rosa-lilás surge do céu e invade a casa dos protagonistas. A partir deste momento, nenhum deles será mais o mesmo. Não espere encontrar uma explicação ao fenômeno, nem mesmo uma extensão das consequências ao resto da sociedade. Este acontecimento mágico, embora provenha dos céus e seja extremamente luminoso, afeta apenas a família formada por pai (Nicolas Cage), mãe (Joely Richardson), filha (Madeleine Arthur) e filhos (Brendan Meyer e Julian Hilliard).

Isso significa que a história não se passa apenas num contexto de fantasia, mas também num cenário inverossímil. Nota-se uma indefinição de tons curiosa por parte da produção, que reverencia o cinema B enquanto evita a todo custo o caráter cômico, ou ao menos autodepreciativo decorrente da reprodução dos códigos de 40 anos atrás. O filme se leva a sério, algo complicado diante de um adversário sem identidade definida: ele é ora representado por uma luz, ora pela névoa. Em seguida, controla a mente dos seres humanos, apossa-se dos corpos, adquire corporeidade, transforma-se num animal e depois num monstro. A criatura é ao mesmo tempo invisível e dotada de garras gigantescas, uma forma de possessão (portanto, interna) e de ataque predador (portanto, externa). O jardim da casa central é tomado flores rosadas, enquanto animais rosados aparecem pelo local. O cineasta desenha uma fantasia kitsch na qual a paleta de cores costumeiramente associada à afabilidade infantil e aos impulsos teen se converte num risco mortal. Enquanto as cenas fabulares soam propícias à chegada de um unicórnio, um ser sangrento irrompe em cena. Caso o filme adotasse um teor crítico em relação a esta apropriação, ele suscitaria um debate muito mais interessante a respeito da subversão estética.

Em termos narrativos, o roteiro se encaminha a uma aleatoriedade típica do cinema trash, contrastando com o refinamento escolhido pela fotografia. O cientista Ward (Elliot Knight) surge de lugar algum e desaparece de acordo com as necessidades da narrativa. Ele se encarrega de testar a água local antes de qualquer traço de contaminação, e apresenta resultados sem ter efetuado qualquer análise – dados estes que jamais possuirão uma função narrativa. Uma espécie de caseiro indígena-enlouquecido habita o terreno, mas jamais efetua qualquer trabalho nem trava contato com os proprietários. A doença da mãe, o estado de solidão do filho mais novo e a rebeldia da garota adolescente seriam ingredientes deliciosos para uma exploração do medo e da paranoia. No entanto, o quinteto sofre com a presença da luz da mesma maneira inevitável e conformista. Não se briga contra o fenômeno, não se encontra um antídoto, não se foge. Os personagens manifestam sintomas monstruosos e acatam sua sina, na posição de vítimas. O ponto de vista é externo: observa-se o sobrenatural de fora, visto que o diretor não convida o espectador a compartilhar a tensão da família. É difícil se identificar com personagens sem construção prévia, de personalidades tão semelhante.

Ao mesmo tempo, os atores encarnam com respeito o desafio de combaterem a luz de modo verossímil. A ótima Madeleine Arthur se sai muito bem na tarefa, passando da incredulidade à aceitação. Joely Richardson possui uma composição modesta, apagada pelos gestos expansivos de Nicolas Cage. O ator se tornou alvo de chacota popular pelos exageros e explosões de fúria. Ao invés de lutar contra isso, parece ter aceitado a caricatura de si próprio. Na cena das verduras ou da crise dentro do carro, o ator eleva a atuação a um nível tão extremo que só faria sentido na comédia ou no horror trash. Ele não pertence ao mesmo filme que os demais, entregando suas falas com pausas inexplicáveis, efetuando uma possível imitação de Donald Trump em alguns momentos. Cage não facilita o jogo cênico aos colegas, aparentemente instruídos a atuarem dentro de um registro realista. Arthur e Knight demonstram desconforto face ao histrionismo do homem ao mesmo tempo irascível e acomodado, que grita aos quatro cantos, mas permanece em casa enquanto os corpos se deterioram. Ao final, não teremos conhecido mais sobre as atitudes de um ou outro personagem, por serem incoerentes consigo mesmos.

Seria tentador estabelecer um paralelo entre A Cor que Caiu do Espaço e a pandemia de Covid-19. O filme foi criado e finalizado muito antes da chegada do novo coronavírus, e a manifestação da doença real se difere muito da agressão alienígena. No entanto, o projeto representa o perturbador conceito do “novo normal” tão alardeado em nossos dias: a aceitação das mortes ao redor, a ideia de que seria mais importante buscar seu bem-estar do que pensar na coletividade, além da tendência a minimizar o problema, em contradição evidente com os fatos. Nathan, Theresa, Lavinia, Ezra, Ward e Benny presenciam um ente amado morrendo em casa (com sintomas que remetem à insuficiência respiratória aguda), mas não correm desesperados nem procuram um médico. A filha se automutila, mas ninguém se importa. O pai tem o braço tomado por alguma infecção grave, porém puxa as mangas e tenta esquecer do problema. A família sucumbe ao ataque devido à decisão de fechar os olhos ao invés de agir, mesmo que seja uns pelos outros. Ao contrário de tantas histórias de heroísmo individual ou coletivo, este projeto privilegia as pessoas covardes ou apáticas. Sim, há uma luz no céu, e daí? “Por que eu fugiria? Essa é a minha casa”, explica a adolescente em certo momento. Que venha o vírus, criatura ou luz mortal. Se eu não morrer, direi então que o perigo, no fim das contas, nunca foi tão grave assim.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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