Crítica


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Sinopse

Anesu é a jovem cozinheira de um pequeno restaurante, localizado em um dos bairros mais pobres do Zimbábue. Todos os moradores apreciam os dotes culinários dela, o que leva o filho de Anesu a inscrevê-la na "batalha dos Chefs", um programa de televisão que premia o melhor chef do país. Ela aceita participar da competição, apenas para descobrir que o universo dos cozinheiros profissionais pode ser muito mais competitivo do que ela imaginava.

Crítica

Pense num filme repleto de sorrisos. Na primeira cena, Anesu (Tendaiishe Chitima) cozinha para o filho pequeno, que cronometra o tempo dela na esperança de ver a mãe no reality show culinário de maior sucesso do Zimbábue. A cena possui o tom amigável de um comercial de margarina. Os encontros entre Anesu e a melhor amiga, Charmaine (Charmaine Mujeri), abordam amenidades e disparam pequenas provocações gentis. Quando a cozinheira amadora se inscreve no concurso, ela quase perde o horário dos testes, mas é recebida com afagos por uma produtora, e com o sorriso encantador de outro concorrente. Dois elementos se tornam claras desde o princípio: a protagonista leva uma vida de dificuldades (ela mora num dos bairros mais pobres da região, cria o filho sozinha, enfrenta o preconceito por não ser casada), e o filme está extremamente disposto a ajudá-la. Os personagens ao redor existem apenas por causa dela, sem terem vida própria, enquanto os empecilhos envolvendo o programa são motivados por Anesu. O diretor Tomas Brickhill oferece uma releitura do conto da Cinderela, com direito à cena do baile, à madrasta malvada, às irmãs invejosas e ao encontro com o príncipe.

Diante da enxurrada de lugares comuns, A Cozinha Incrível de Anesu (2017) se torna um feel good movie previsível e pouco ambicioso. Ele corresponde a uma versão cinematográfica do comfort food, ou seja, aquela refeição não necessariamente refinada ou muito nutritiva, porém feita para dialogar com alguma nostalgia ou afeto, no caso, dialogando com os sentimentos epidérmicos dos apreciadores de romances e histórias de superação. (Ganha um doce quem adivinhar o vencedor da competição culinária). Brickhill não se priva de incluir uma vilã realmente exagerada, típica das telenovelas melodramáticas, além de uma mãe perversa, um rapaz doce que só sabe fazer favores cena após cena etc. Cada personagem é reduzido ao único traço de personalidade que convém à trajetória da cozinheira: existe o grupo que deseja ajudá-la e o grupo que pretende derrubá-la da competição. O otimismo evidente em cada cena não deixa dúvidas sobre o grupo vencedor ao final. Talvez a aposta segura constitua uma maneira de popularizar uma cinematografia sem indústria plenamente desenvolvida, como é o caso do Zimbábue. Trata-se de uma produção visando o maior número possível de espectadores pela facilidade com que se apresenta ao público. Ao invés de realismo social, Brickhill vende escapismo.

Esta abordagem poderia se traduzir numa diversão mais satisfatória caso a direção não tivesse tantos problemas técnicos e criativos. O cineasta iniciante, em parceria com o diretor de fotografia Sebastian Lallemand, também em seu primeiro longa-metragem, demonstra dificuldade em decidir onde posicionar a câmera, em qual ângulo, e principalmente, com qual lente e qual profundidade de campo. Todas as imagens soam deslocadas, como se constituíssem um improviso diante de dificuldades encontradas das locações, no tempo de filmagem etc. Na dúvida, a fotografia simplesmente posiciona sua câmera num canto do cômodo e tenta abranger o maior espaço possível. A casa onde a protagonista vive existe apenas à noite, quando uma luz exageradamente azul entra pela janela, no melhor estilo teatral. Durante o trabalho num restaurante, Anesu é captada por um olhar curioso, ora à distância (como se estivesse sendo espiada), ora frontal demais. Além disso, a montagem não evita quebras de eixo, problemas de continuidade e cortes abruptos. A trilha pop soa deslocada neste projeto, repleto de pequenas estranhezas apesar da fórmula tão inocente e familiar.

Além disso, o roteiro sublinha passagens suficientemente claras por si próprias. O filme subestima a capacidade de compreensão do espectador: quando Anesu é vítima de um complô da vilã do programa, ainda precisa lidar com o roubo de sua bolsa na saída da gravação, para comprovar que o dia da protagonista foi realmente ruim. (Curiosamente, nenhuma atitude é tomada em relação à bolsa). Para sugerir que a mãe da personagem não aprova suas decisões, precisa inserir close-ups longos no olhar de desaprovação. As atuações adotam um único tom (o olhar ingênuo e sonhadora da Cinderela, o tom reconfortante do príncipe, o olhar de malícia da adversária), o que converte esta história em uma fábula exemplar, um conto moral. A acentuação dos maniqueísmos converte A Cozinha Incrível de Anesu numa narrativa de aparência infantil, ou seja, numa experiência oferecida a um público que se supõe incapaz de desvendar subentendidos ou ambiguidades. Dentro de um país com acesso a mais de uma centena de complexos cinematográficos, talvez o público já tenha capacidade suficiente para compreender a linguagem cinematográfica para além do óbvio.

Talvez exista, nas entrelinhas, alguma busca pelo discurso emancipatório: a personagem é rejeitada socialmente por ter sido mãe solteira, mas consegue reconquistar a aprovação de todos devido à exposição midiática. O filme vende esta transformação como um mérito de Anesu e uma possibilidade de pacificação de conflitos sociais, ainda que deixe um gosto amargo. Afinal, a única possibilidade para uma mãe solteira se tornar querida seria através do estrelado instantâneo? Por que a cozinheira precisaria implorar pela aprovação alheia, ao invés de nutrir uma autoaceitação a respeito de sua situação? Por que a única maneira de a mulher conquistar um espaço dentro do concurso seria através dos ensinamentos do príncipe, e depois da desistência deste homem generoso? A boa vontade da trama esconde o fato de que a única emancipação oferecida a Anesu se encontra na submissão a um homem e na conformidade aos preconceitos locais. Este julgamento pode ser fruto de um olhar latino-americano do autor deste texto, muito distante da realidade africana. O discurso do filme, quem sabe, traga um conteúdo progressista para os padrões locais, ainda que calcado numa universalidade conformista. Ao menos, resta a importante constatação de encontrarmos um raríssimo conteúdo do Zimbábue disponível ao público brasileiro, algo digno de comemoração.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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