Crítica
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Sinopse
Quando o querido editor da revista The French Dispatch morre, seus jornalistas, moradores da pequena cidade francesa de Ennui-sur-Blasé, precisam criar uma última edição antes do encerramento das atividades. Eles desenvolvem histórias paralelas sobre política, artes e gastronomia, além do aguardado obituário.
Crítica
“Agora eu era o herói / E o meu cavalo só falava inglês / A noiva do caubói / Era você, além das outras três”. É curioso como o imaginário infantil livre do qual fala Chico Buarque em João e Maria se aplicaria à concepção de cinema de Wes Anderson. Seus filmes são lúdicos, no sentido estrito e inocente do termo: trata-se de fragmentos de amor sem sexo, de morte sem tristeza, de gestos sem consequências. A exemplo dos desenhos animados, os personagens podem ser alvo de uma explosão, porém retornam intactos na cena seguinte. Enquanto isso, o diretor brinca com sua câmera-joystick, fazendo movimentos divertidos e bruscos para cima, para baixo, para os lados, em 360 graus. O resultado possui o caráter vívido dos relatos imaginários de crianças pequenas, quando inventam trajetórias absurdas com dragões, naves espaciais e mundos de sonhos. No entanto, o filme também empresta dessa lógica infantil o aspecto de aleatoriedade, o fazer por fazer, sem dizer algo revelante sobre seu tema ou o tempo em que se encontra. Em A Crônica Francesa (2021), esse menino-autor mimado e poderoso dispõe de um orçamento de US$ 25 milhões, um estúdio gigantesco como suporte, e um dos elencos mais impressionantes da indústria. O garoto sonha alto porque possui os melhores e maiores brinquedos à disposição.
Em tese, sua iniciativa constitui uma carta de amor ao jornalismo, através da revista fictícia The French Dispatch, situada na cidadezinha francesa de Ennui-sur-Blasé e voltada ao público anglófono. Percebe-se o carinho do diretor da publicação (interpretado por Bill Murray) por sua equipe, de quem tolera todos os atrasos, abusos de gastos e mudanças de temas. Em contrapartida, esta representação do jornalismo se distancia de uma prática editorial verossímil, seguindo o preceito do universo circense desenvolvido por Anderson. Por meio de esquetes independentes, ele também elogia a gastronomia, as artes plásticas, o teatro, a literatura, o desenho animado e o próprio cinema. Em comum, estas manifestações artísticas carregam o prazer da subversão de expectativas e o desprezo pela prestação de contas - a narrativa elogia o grande chef que cozinha o que bem deseja, quando o deseja; a musa de um pintor que somente posa quando quer; o pintor avesso a prazos e ordens, os manifestos rejeitados, reescritos e rasgados porque elaborados de qualquer maneira. Este universo regressivo remete à fase em que os filhos pequenos aprendem a dizer “não”, testando os limites de sua autonomia face aos adultos. Por isso, o diretor se identifica com os libertários e debochados escritores da revista, ao invés do tolerante dono, figura paterna que tudo acata, e inclusive liberta pessoas da prisão contanto que lhe redijam um artigo apropriado. O projeto expressa o desejo de cometer atos irrefletidos e ser desculpado caso algo saia errado - um utópico passe livre.
Além disso, o cineasta permite que atores consagrados por filmes clássicos desconstruam suas personas através de figuras patéticas e gentis: Saoirse Ronan interpreta uma prostituta de armas na mão; Timothée Chalamet faz o jovem revolucionário que se relaciona sexualmente com Frances McDormand; Tilda Swinton exibe um orgulhoso nu artístico à plateia de um congresso. Christoph Waltz, Cécile de France, Guillaume Galienne, Bob Balaban, Hippolyte Girardot, Damien Bonnard e tantos outros intérpretes aclamados em seus países aceitam pontas minúsculas neste universo afetuoso. O resultado remete a um exercício de escola de teatro, onde são convidados a posarem, rejeitarem a psicologia dos personagens, abraçarem as caricaturas. Anderson demonstra verdadeira fascinação por rostos atípicos, exagerados pela maquiagem e pelas escolhas artificiais. Neste filme, em particular, constrói uma série de tableaux vivants, com muitas dezenas de figurantes encarando a câmera com seus rostos oblíquos, pontiagudos, estranhos. A Crônica Francesa sublinha o deleite plástico, ao invés de narrativo: enquanto as imagens, cuidadosamente decoradas, iluminadas e enquadradas, oferecem o humor em sua construção improvável, o roteiro se converte numa alegre bagunça. Assim como o pintor abstrato Moses Rosenthaler (Benicio Del Toro), o cineasta deseja observar o mundo naturalista e então pintar os traços livres que lhe vierem à cabeça a partir destes estímulos.
Isso significa que o longa-metragem aprofunda os tiques do autor enquanto busca novas formas de expressividade dentro da cartilha rigidamente autoimposta de cores pastéis, músicas tragicômicas e planos simétricos. Em termos de linguagem, oferece alguns dos recursos mais belos e imaginativos da carreira de seu criador, que substitui o simples corte da montagem pela possibilidade de decupar (ou seja, reenquadrar, mudar de ângulo e ponto de visão) dentro de um mesmo plano. Quando o jovem Moses (Tony Revolori) se transforma no pintor adulto, os dois atores se encontram na imagem e um entrega seu colar ao outro. Ao invés de efetuar close-ups no rosto de Simone (Léa Seydoux), é a guarda de prisão que se aproxima da câmera para apresentar seu texto e, então, recua ao plano de conjunto. Durante uma entrevista, o enquadramento aberto valoriza o escritor Roebuck Wright (Jeffrey Wright) e o entrevistador (Liev Schreiber), no entanto, uma mudança brusca de luz durante o plano passa a iluminar apenas o rosto do jornalista, criando um efeito de close-up. Nas sequências de briga, os personagens “congelam" numa pose evocando o movimento, em quadros-vivos, embora obviamente estejam simulando um efeito que a pós-produção produziria com facilidade. O projeto retira da mesa de montagem e da finalização o poder de intervir na ludicidade, tratando de embutir a sua magia e seus truques na diegese, em frente às câmeras e durante a filmagem.
Enquanto as trucagens dignas do bom cinema mudo impressionam, a narrativa abraça o caos. Há inúmeras histórias dentro da história, e mesmo os segmentos internos possuem subdivisões. O roteiro parece esquecer, ou apenas ignorar, a premissa do obituário e da última edição antes do fechamento do French Dispatch. Nunca saberemos o que será destes escritores após o encerramento da revista, afinal, eles não possuem vida fora do contexto da redação - assim como brinquedos, serão guardados quando não servirem mais ao propósito imediato da diversão. A desconexão entre episódios soa divertida nos trechos abertamente apartados da realidade (a subtrama do pintor enlouquecido com Del Toro e Seydoux), porém incomoda ao abordar instantes fundamentais da História (a evocação cômica de maio de 1968, ridicularizando o movimento e minimizando seus objetivos). O trecho com Owen Wilson soa deslocado, devorado pelos demais. Em obras recentes como Ilha dos Cachorros (2018) e Moonrise Kingdom (2012), o diretor inseria sua habitual magia numa estrutura linear e coesa. Aqui, atira para todos os lados (literalmente, em duas sequências), o que lhe permite alçar voos altos em termos estéticos, enquanto sai dos trilhos em termos narrativos.
Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 7 |
Daniel Oliveira | 6 |
Chico Fireman | 5 |
Ailton Monteiro | 6 |
Ticiano Osorio | 6 |
Robledo Milani | 8 |
Leonardo Ribeiro | 8 |
MÉDIA | 6.6 |
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