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Sinopse

Carlos e Solange são apaixonados um pelo outro desde a infância. Na lua-de-mel, a mulher se recusa a transar com o marido, que não aceita a negativa e a estupra. Ainda que o ame, ela não consegue ficar a vontade e, para provar a si mesma que não é frígida, inicia uma rotina de sedução aos passageiros do transporte público na cidade.

Crítica

Não à toa o cineasta Neville D’Almeida começa A Dama do Lotação ressaltando uma inclinação infelizmente verossímil, pois observada facilmente no cotidiano, ao conservadorismo, por meio do diálogo entre o noivo, Carlinhos (Nuno Leal Maia), e seu pai (vivido por Jorge Dória). Adiante, noutra conversa que visa gerar alguma paz ao recém-casado que não encontra reciprocidade sexual na esposa, essa dimensão se amplia, com a falta de interesse físico sendo atrelada à virtude. De acordo com esse pensamento, “santas” são aquelas que não sucumbem ao desejo, enquanto as “devassas” transitam por um caminho contrário, ou seja, basicamente libertário. O realizador costura bem essa trama nascida como conto de Nelson Rodrigues, em que a hipocrisia é exposta nos colóquios masculinos. Solange (Sônia Braga), a mulher escrutinada por essa predisposição ao chauvinismo, verbaliza constantemente paixão por seu cônjuge, não compreendendo a própria falta do querer. Mas o desejo e seus mistérios permitem-na sentir muita atração por desconhecidos, com os quais faz sexo.

A Dama do Lotação é demarcado pela voluptuosidade impressa no trabalho de Sônia Braga, a expressão do impulso carnal delimitado por uma sociedade conservadora. A despeito da forma abrupta com que Neville D’Almeida lida com a transformação que faz Solange desabrochar e, por conseguinte, retomar as rédeas de seu corpo – num instante ela está repleta de dúvidas e senões, no outro já passa a demonstrar uma voracidade sexual insuspeita –, o filme coloca em jogo uma importante emancipação. Sim, pois apesar das tentativas do homem de "castrar" sua esposa, de apontar o dedo para uma suposta “avaria”, ao testar-se com demais parceiros e ao sistematizar tal sanha, a protagonista resgata o controle das suas vontades, impondo as regras. Ainda que ocasionalmente incorra numa objetificação, especialmente ao perscrutar com lascívia as curvas da atriz, o cineasta consegue dar conta desse movimento de desmonte do discurso predominante e falocêntrico.

Os contratos quebrados pela atuação de Solange são masculinos. Ela se relaciona com o melhor amigo de Carlinhos, vivido por Paulo César Peréio, e dessa maneira coloca em xeque a fraternidade dos homens. De forma semelhante, leva o sogro para um motel, lançando luz sobre a dissimulação paterna do reacionário que adora gabar-se da densidade moral de seu comportamento. Mesmo que Neville se contente, num bloco específico de A Dama do Lotação, em enfileirar casos extraconjugais, em apresentar a personagem de Sônia Braga em cenas tórridas, há um valor considerável no atrelamento da excitação ao conceito de transgressão. Não é apenas a nudez do elenco, especialmente a da estrela erigida ao panteão dos símbolos sexuais incontornáveis do cinema, mas a representatividade de um exercício, livre de culpas, da libido. Indiretamente, Solange causa uma cisão, libertando o gozo físico das amarras do amor romântico, desse contrato nupcial.

A Dama do Lotação conta, ainda, com Pecado Original, entoada frequentemente por Caetano Veloso, música que cria um sutil elo entre a história contada e o discurso católico do livro do gênesis, da fêmea como propulsora da infração que rendeu o banimento humano do paraíso. Neville D’Almeida faz de Solange um símbolo de ruptura, caso raro de resistência e de demonstração da força mediante a libertação do corpo. Sublinhando certos postulados rodrigueanos, mira com gosto a família burguesa, abordando de leve o caso homossexual que balança as estruturas memorialísticas acerca de um casamento desfeito pela morte. Mesmo que perca certas oportunidades para tornar as observações ainda mais contundentes e profundas – como o estupro marital, de implicações praticamente negligenciadas –, que resvale no puro fetichismo, o cineasta logra êxito ao criar uma equivalente tropical de A Bela da Tarde (1967), não surrealista com Luis Buñuel, mas igualmente iconoclasta. No fim, a protagonista anseia por adequação diante do psicanalista, considerando-se desajustada, como se isso fosse um problema, um novo sintoma da enfermidade dessa sociedade tacanha.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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