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Crítica


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Sinopse

Aos 60 anos, Anna é uma atriz em fim de carreira, raramente convidada para grandes papéis. Ela tem um susto certa noite quando um adolescente rouba sua bolsa pelas ruas da cidade, e passa a desenvolver traumas relacionados ao episódio. Quando aceita dar aulas de oratória a um jovem estudante de teatro, ela percebe estar diante do ladrão de dias atrás. Entre repulsa e provocação, os dois desenvolvem uma inesperada relação amorosa.

Crítica

A sequência de abertura constitui o instante mais ousado, e também o melhor, deste longa-metragem. Uma mulher se encontra dentro da delegacia, tendo que escolher o suspeito de algum crime na fila de rapazes apresentados através de um vidro. Ela imediatamente se imagina fazendo sexo com um deles, o que provoca certo desconforto (tanto nela quanto no espectador, presume-se). Em seguida, demonstra um comportamento estranho ao delegado, relembrando sua profissão de atriz e aparentando interpretar uma personagem de ares maneiristas. Mais tarde, estes instantes serão devidamente revistos e contextualizados, e nenhuma sequência terá peso ou estranheza equivalente. A E I O U: A Quick Alphabet of Love (2022) se inicia numa sequência vertiginosa de relações sem causa nem consequência, com aparência de delírio surrealista — vide o resgate da bolsa numa perseguição acelerada pelos becos da cidade. O filme se abre num registro digno dos sonhos, ou talvez dos pesadelos. Adiante, se renderá a caminhos tradicionais, ainda que sem perder por completo o grão de loucura que constitui sua principal qualidade. Como não se encantar com a mulher que, aterrorizada pelo medo de invasão doméstica, estica cordas com pequenos sinos pendurados por todos os cantos da casa?

A diretora e roteirista Nicolette Krebitz abraça os princípios da comédia romântica, porém rompendo com a maioria dos clichês associados ao subgênero. A união entre a atriz de 60 anos de idade (Sophie Rois) e o adolescente com distúrbios psíquicos soava impossível por diversos motivos: primeiro, a diferença de idade que os coloca em experiências de vida antagônicas; segundo, o fato de ele ter roubado a bolsa dela poucos dias atrás, derrubando-a na rua; e terceiro, o desprezo da ilegalidade por parte dela, contra a incapacidade de se manter nas normas, por parte dele. Obviamente, este estilo de cinema adora aproximar figuras supostamente incompatíveis, apenas para provar que o amor supera obstáculos e todos têm direito à sua metade. Em contrapartida, o filme foge ao otimismo milagroso, desenhando o relacionamento como problemático, desde o início. A união jamais será vista como reparadora às suas dores pessoais: em outras palavras, eles não se completam, apenas oferecem um instante de afeto e descontração. A dupla se converte, aos poucos, em mãe e filho, professora e aluno, mentora e pupilo, amiga e amigo. Os beijos e carícias, quando enfim aparecem, se sucedem a interações múltiplas que vão do grito à revolta. A cineasta brinca com dinâmicas de repetição: Adrian entra e sai da casa de Anna repetidas vezes, seja para deixar um pequeno objeto, ou para impor sua presença sem avisar. Desde o assalto inicial, eles se invadem, transgridem, abusam. Este é um relacionamento repleto de excessos e incompreensões de ambos os lados, muito distante do ideal de um romântico.

O texto desenvolve maneiras inusitadas de promover o reencontro entre eles, após as inúmeras separações. O símbolo de dois pássaros de cores diferentes, a sopa, os cigarros colocados acima do armário (“É para eu fumar menos”, ela explica) e a própria bolsa se ressignificam do início ao fim, passando de símbolos de dor a afeto, e vice-versa. Quando se espera uma briga, eles fazem as pazes abruptamente; quando já se havia desistido de um encontro carnal, ele ocorre. No lugar do típico discurso motivacional, do tipo “Eu acredito em você”, Anna dispara um monólogo niilista a respeito da sociedade atual. Seria bobagem acreditar que basta seguir seus sonhos, basta se esforçar muito. “Não existe lugar para alguém como você”, ela afirma, recebendo uma cusparada na cara em resposta. Krebitz passa algumas rasteiras no espectador, sobretudo no terço final, quando as ações abraçam o realismo fantástico (especialmente na viagem ao sul da França, e a nudez pelas ruas da cidade). Embora A E I O U: A Quick Alphabet of Love não recupere os ruídos de montagem e os saltos frenéticos do início, ele permite a adesão à fábula tresloucada, justificável apenas no imaginário afetivo de ambos. Anna e Adrian aparentam ser os amigos imaginários um do outro, surgindo num instante de crise para se acalmarem. O espectador pode ter a impressão de que, no final, um dos dois acordará em sua cama, descobrindo que tudo correspondeu a um sonho.

Ora, a autora não é tão pueril, e possui pleno controle do registro de tons — ela jamais renegaria sua fantasia, por exemplo. O prazer da direção, e também do espectador, se encontra nas pequenas rupturas singelas com a realidade: as sucessões de roubo, o episódio dos diamantes, o policial que se levanta da cadeira no instante preciso em que a câmera de segurança revelava uma informação comprometedora. O destino (ou talvez seja melhor dizer, a autora) facilita o caminho destas contravenções, reforçando a ternura evidente pela dupla, e permitindo que fiquem juntos apesar dos inúmeros quiproquós no caminho (a pane no trem). Sophie Rois está excelente no papel da mulher egocêntrica, porém naturalista, mantendo um relacionamento complexo com o vizinho (Udo Kier, subaproveitado) e adotando certo distanciamento pela função dupla de narradora — ela conta sua própria história em off, na terceira pessoa. Rois imprime um misto de fragilidade e força, sendo agressiva quando lhe convém (o abuso no episódio da rádio novela) e se transformando numa adolescente diante da possibilidade de suspensão do real (a sequência do cassino). Milan Herms faz o que pode para acompanhá-la, em tom menos expressivo, mas ainda competente num personagem que poderia se limitar à caricatura do adolescente rebelde. Acima de tudo, diretora, atores e equipes criativas parecem se divertir com esta fantasia lúdica, e tal prazer imprime nas imagens. Se alguns filmes cativam pela precisão, outros nos conquistam pela possibilidade de uma viagem improvável, do tipo que somente a ficção tornaria verossímil.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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