Sinopse
Joan Castleman é casada com um homem controlador e que não sabe como cuidar de si mesmo ou de outra pessoa. Ele é um escritor e está prestes a receber um Prêmio Nobel de Literatura. Joan, que passou 40 anos ignorando seus talentos literários para valorizar a carreira do marido, precisa decidir o que fazer nesse momento tão importante.
Crítica
Numa das primeiras cenas de A Esposa, o casal interpretado por Jonathan Pryce e Glenn Close está esperando por uma importante ligação. Ele está nervoso, e afirma: “se não for dessa vez, abandonaremos tudo e vamos nos mudar para as montanhas, onde passarei meus dias lendo em frente à lareira”. Estão na cama, e ainda que estejam na faixa dos 70 anos e visivelmente estressados com o que pode acontecer no dia seguinte, antes de dormir – por insistência dele, que fique claro – acabam fazendo sexo. Logo o dia amanhece, e com ele, às 6h da manhã, o telefone toca, dando a confirmação: Joe Castleman (Pryce) foi escolhido para receber o Prêmio Nobel de Literatura! E ainda que deixe transparecer sua felicidade, procura manter uma falsa tranquilidade. Isso apenas até ficarem os dois novamente sozinhos, quando sobem na cama e, aos pulos, ele grita: “eu vou ganhar o Nobel, eu vou ganhar o Nobel”. Parece ser apenas o início de uma história simples, de um homem alcançando um sonhado reconhecimento por uma vida dedicada ao ofício da criação. Mas nada estaria mais longe da realidade, tanto no aspecto macro da situação, como também nos pequenos detalhes que esse quadro esconde. E é essa atenção às suas múltiplas camadas de leitura que faz o filme do sueco Björn Runge ser mais do que as primeiras impressões poderiam indicar.
Baseado no romance homônimo de Meg Wolitzer, A Esposa deixa claro já no título que, apesar de Joe ser o laureado, é nela – Joan (Close), quem sempre esteve ao seu lado – que devemos nos concentrar. Tudo se passa em poucos dias. Após o aviso, os dois e o filho mais velho, David (Max Irons) – que, por sinal, também é escritor, porém em início de carreira – partem para Estocolmo, onde a honraria será concedida. Estamos na semana que antecede à premiação. Em todos os momentos em que a oportunidade se faz possível, ele não hesita em agradecer à companheira por sempre lhe ter sido presente, e que sem ela nada daquilo teria sido possível. Ela, no entanto, não consegue evitar um desconforto a cada menção do seu nome. Mais do que uma humildade em excesso, há um claro descompasso entre o que é dito publicamente e o que se desenvolveu nos bastidores. Os segredos da vida íntima de ambos não seriam mais do que isso, mera frivolidade de duas pessoas que decidiram construir uma vida juntas, não fosse a notoriedade ter se aproximado. E com todos os olhos voltados a apenas um, como não perguntar se tal retorno é, de fato, justo?
Quando o filho envia um conto de sua autoria para o pai avaliar, é a mãe que conversa primeiro com o garoto, dando-lhe conselhos e observações. Mas o que sabe ela, se o renomado escritor da família é outro? O patriarca, no entanto, está tão comovido pelos recentes acontecimentos que, numa conversa trivial, chega a esquecer – ou seria reconhecer? – o nome de uma das suas personagens mais populares. Seria natural ele não ter tempo para dedicar ao jovem. O jornalista Nathaniel Bone (Christian Slater), que os acompanha até a Suécia e sonha em obter permissão para escrever uma biografia do autor, indica pensar diferente. Talvez seja uma questão de competência. A verdade, pelo que parece, é mais nebulosa do que o preto e branco que ambos, tanto marido quanto esposa, sempre fizeram questão de retificar. Estaria ela arrependida de algo? Ou ele negligenciado um antigo acordo? Como seguir perdoando falhas de tantos anos de convívio, principalmente quando essas vão além do mero cotidiano, explorando espaços muito sonhados, mas nunca antes visitados?
Há um mistério a ser solucionado em A Esposa. Esse, no entanto, não se sustenta por muito tempo. A partir do ponto em que voltamos algumas décadas e acompanhamos os jovens Joe (Harry Lloyd, de Game of Thrones, 2011) e Joan (Annie Starke, pela segunda vez interpretando uma versão mais nova da própria mãe – ela é filha de Close – como já fizera na comédia Correndo Atrás de um Pai, 2017) se conhecendo – ele professor, ela aluna, ele casado, ela apaixonada, ele relutando entre as aulas e a escrita, ela um talento a ser descoberto – qualquer dúvida se dissipa. Ciente disso, o cineasta não dedica seus esforços a tentar esconder o que é óbvio. Por outro lado, ele sabiamente decide deixar as responsabilidades nos ombros de um elenco em perfeita sintonia, liderados por um Jonathan Pryce não mais do que convincente em toda a sua magnitude e decadência, e por uma Glenn Close no domínio total do seu jogo, praticando com destreza um exercício de olhares e não-ditos que somente alguém que saiba combinar experiência com talento pode se aventurar sem deslizes. O que se vê são dois vulcões em cena, um lutando desesperadamente para não entrar em extinção, ao mesmo tempo em que o outro dedica todo o seu empenho a evitar uma erupção que não deixe pedra sobre pedra. Como se poderia imaginar, o conflito não tardará, e o preço por ele exigido custará mais do que qualquer um poderia prever.
Está tudo nas entrelinhas, ou mesmo nas pequenas coisas que insistem em passar desapercebidas, mas que podem dizer mais do que os grandes discursos. Joe Castleman, como o nome afirma, é um castelo encerrado em si mesmo. No entanto, uma fenda há muito ignorada está cansada de resistir sozinha, e assim que se permite dar vazão àquilo que sempre reteve, o universo que aqueles dois tão bem pensavam habitar deixará, de uma vez por todas, de existir. Afinal, se antes pulavam no colchão para comemorar que “nós vamos ser publicados”, o plural parece ter ficado para trás, em pleno desuso, e é chegado o momento do singular. A Esposa não é somente um libelo feminista, um chamado àqueles que muitas vezes não são vistos, mas que, ao mesmo tempo, podem guardar em si mundos inteiros prontos para serem explorados. É também uma lição de humanidade e humanismo. São pessoas, afinal, e, portanto, tão falhas quanto repletas de virtudes. E é a partir desse entendimento que se poderá, enfim, ser mais e melhor. Para tanto, é preciso dar o primeiro passo. Com todas as dores e prazeres que esse carrega.
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