Crítica

Não podemos dizer que A Estranha Cor das Lágrimas de Seu Corpo se trata de um filme sensorial ou de imersão imagética. Assim, estaríamos simplesmente evitando a discussão, fugindo do que suas imagens e seus sons realmente nos impelem a experimentar um pouco além do que já é profissão de todo criador. Também não se pode querer vencer as imagens, racionalizando-as, tentando traçar entre elas uma lógica que busque limitar a experiência ao que o filme pretende narrar. Aqui, o modo de mostrar é mais importante do que aquilo se mostra. A Estranha Cor das Lágrimas de Seu Corpo vai do Giallo italiano (Dario Argento, Mario Bava, Lucio Fulci; mais Argento do que todos os outros, para ser mais rigoroso) a Brian De Palma (ele mesmo compartilhando da paixão pelo horror italiano) sem paralisar suas imagens na emulação do espetáculo "de gênero" e no manancial de referências. Elas estão evidentemente ali, sequer pretende-se escondê-las, mas o filme não se acomoda nelas; antes pelo contrário, as entorpece, provoca, destrói e reconstrói.

O descontrole do universo, a reconstrução do tempo, do espaço, da cor, do movimento, da palavra, do corpo, eis o âmbito de formas e contextos nos quais o novo filme de Héléne Cattet e Bruno Forzani se insere. É literalmente isso que o longa busca, abraçar todos os pavores do desconhecido, radicalizar o embaralhamento dos sentidos, operar uma narratividade das formas e dos gestos. A obra é muito do detalhe: começa de dentro para fora, os planos vão abrindo, revelando; na verdade, não há muito o que conhecer. O mistério, quando há, não norteia a narrativa, apesar da atmosfera de suspense (é também um filme exatamente de atmosfera, que precisa, antes de tudo, desafiar o espectador a aceitá-la para começo de conversa).

Aqui, o corte não é aleatório, é uma conseqüência da natureza da imagem. A preocupação com a estrutura, com a forma e com a distribuição de cada nova imagem segue uma lógica própria: a lógica de sua própria verossimilhança, de sua própria “captação de performances”, de rostos, olhos e rastros de sangue. Fica sempre a sensação de incômodo mesmo, de supressão dos sentidos ao mesmo tempo que eles explodem na tela. A violência, graficamente exposta ou apenas sugerida, não é tanto símbolo, mas efeito sincopado do horror que atravessa a tela.

É próprio do cinema de Forzani e Cattet causar esse estranhamento pela fruição aparentemente incontrolada e aleatória (o filme não é senão uma ópera da carne, uma devoção aos extremos da imagem e do som mediadas pela pele), que Amargo (2008) anunciava, já era ele mesmo o prelúdio de uma obra que, antes de qualquer juízo de valor, já cravava suas preferências estéticas, e portanto políticas. Trata-se de uma concepção de cinema, de criação mais que de representação, o que mostra certa firmeza.

Se por um lado o filme parece pisar em falso no final, quando fica claro que há alguma dificuldade em encerrar as coisas, em travar a roda giratória das imagens antes que elas comecem a mostrar sinais de esfacelamento e letargia e acabem sugando do filme justamente seu ritmo (e com ele sua força), todavia a esta altura o espectador não poderia mais confundir a deliberação de um procedimento desconstrutivo com coisas que deveriam ou não fazer sentido, não poderia também buscar uma verdade escondida lá onde sequer existe a ambição de arredondamento da história, de fechamento crucial, do clímax aparador de arestas. Penso que é melhor assim. A Estranha Cor das Lágrimas de Seu Corpo é um filme de fluxo e refluxo em um sentido plenamente funcional: ele cinde, dobra e despe o véu das nossas expectativas de tempo e de espaço e as converte em uma vibrante orgia de figuras.

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