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Sinopse

Radicados no Reino Unido, dois jornalistas brasileiros investigam a longa tradição de golpes de estado no Brasil. Em meio a entrevista com políticos, celebridades e figuras proeminentes, eles elegem a mídia hegemônica como vilã.

Crítica

A expressão “pregar para convertidos” é empregada quando certas mensagens são direcionadas a quem não precisa ser convencido de sua validade. Geralmente ela é utilizada de modo pejorativo, sobretudo ao ser equivalida a também muito usada “chutar portas abertas”, ou seja, falar o já sabido para um público interessado nelas justamente por já saber. No entanto, talvez seja necessário reavaliar esses conceitos no nosso contexto social em que o binarismo fomentado pelas redes sociais (e outras ferramentas) estimula esse tipo de discurso. Dentro das famosas “bolhas”, basicamente identificamos a circulação de informações que seus públicos acolhem de antemão como verdadeiras, sem ao menos questionar. E isso tem a ver com uma noção de validação individual, dentro de uma realidade em que todo mundo supostamente precisa ser reconhecido como um relevante emissor de conteúdo. Então, aquilo que nos dá razão é mais agradavelmente compreendido como uma "verdade". Feita essa introdução, vale questionar se A Fantástica Fábrica de Golpes “prega para convertidos” ou se simplesmente assume uma posição clara no debate sobre o papel da mídia à triste tradição de golpes de estado no Brasil. Chegar a conclusões pode se tornar uma tarefa árdua, mas à qual não nos furtaremos. Primeiro é preciso pontuar que esse recorte feito por Victor Fraga e Valnei Nunes é importante.

O ponto central do discurso do documentário criado por dois jornalistas brasileiros radicados no exterior é o funcionamento nefasto do Grupo Globo como monopólio de comunicação que historicamente foi favorável aos golpes contra iniciativas e governos progressistas. A narração e o entrelaçamento de fatos resgatados com manchetes indicativas desse “golpismo global” é a estratégia jornalística para embasar uma tese. Sim, pois Victor Fraga e Valnei Nunes não estão investigando um assunto para encontrar uma resposta. A dupla de cineastas monta um mosaico bem articulado de depoimentos e ilustrações para comprovar uma hipótese defendida constantemente: a de que o Grupo Globo é um agente negativo da sociedade brasileira, a despeito das contradições existentes entre o seu jornalismo conservador e o departamento de entretenimento liberal. Um indício do “pregar para convertidos” é a escolha dos nomes com os quais o espectador é levado a se relacionar nas quase duas horas de longa-metragem. A Fantástica Fábrica de Golpes elege como alguns de seus protagonistas Chico Buarque, Márcia Tiburi, Jean Wyllys e Dilma Rousseff, ou seja, dá voz e vez a personalidades notoriamente alinhadas com o espectro da esquerda (ou centro-esquerda) da política brasileira. Provavelmente sabedores das lógicas das bolhas, os realizadores apostam na segmentação.

No entanto, em que pese essa deliberada simpatia por essas figuras notórias da esquerda, A Fantástica Fábrica de Golpes constrói seu discurso de modo bastante lógico e cristalino. E isso permite espaços de interesse até ao mais empedernido dos direitistas que pode torcer o nariz aos depoentes. Quando jornalistas e membros de grupos ativistas recorrem à História para denunciar o “golpismo global” – aqui colocado em aspas por ser uma tese do filme –, Victor Fraga e Valnei Nunes mostram fatos que corroboram as falas, como as capas de jornal O Globo defendendo a ditadura civil-militar ou mesmo o editorial nojento que celebrou o golpe de 1964 como uma “renovação da democracia”. Ainda dentro dessa estratégia de cercar hipóteses de fatos e indícios bastante sólidos, a dupla distribui dados que mostram a discrepância sintomática entre as notícias positivas e negativas que Jornal Nacional e O Globo deram em relação ao ex-presidente Lula e às demais narrativas associadas ao PT. Um desses momentos mais esclarecedores do filme é quando há uma verdadeira aula de semiótica desvendando os efeitos da soma entre a manchete incriminadora e a imagem relativa a outra pauta: o resultado pode criar no leitor a ideia deturpada a serviço de determinado interesse. Portanto, há subsídios para reverberar além da “bolha da esquerda”, claro disso dependendo a generosidade do espectador.

Mas, ponderado tudo isso, será que Victor Fraga e Valnei Nunes “pregam para convertidos”? De certa forma sim, mas não tornando o discurso restrito ao espectador inclinado a concordar, uma vez que utilizam as ferramentas do (bom) jornalismo para apresentar aos demais os indícios que comprovam a sua tese. Assim sendo, as palavras dos “esquerdistas” não são fogos de artifício estourando num céu vermelho e pouco convidativo a quem pensa diferente. As provas históricas, os testemunhos de figuras internacionais, a simetria com exemplos semelhantes em contextos distintos (internacionais) criam uma narrativa instigante e combativa em semelhante medida. A Fantástica Fábrica de Golpes evidentemente assume um lado e não faz questão de esconder isso, até porque opta por tornar público aquilo que é tido como notório fora do alcance popular. Claro que em tempos de polarização extrema e de validação coletiva em bolhas essa benevolência do longa-metragem com os “não convertidos” pode ser colocada em xeque, até porque há realmente espectadores incapazes de refletir diante de personalidades com as quais divergem radicalmente. Portanto, é de se imaginar que os anti-globo se sintam mais contemplados, bem como os espectadores de inclinação progressista. Contudo, há espaço à reflexão dentro da defesa tão ferrenha da hipótese que podemos aceitar ou refutar, mas diante da qual é difícil ficar indiferente. Dentro de uma abordagem jornalística e ilustrativa, o filme de sai bem.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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