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Sinopse

Petrov sofre de uma forte gripe. Aos poucos, percebe que os outros moradores de sua cidadezinha na Rússia também sofrem deste mal que não passa. Enquanto a epidemia invisível se espalha pelo local, começam a surgir acontecimentos inesperados incluindo alienígenas, onda de assassinatos e desaparecimento de cadáveres.

Crítica

É preciso discutir os filmes malvados - aqueles em que os personagens são violentos pelo prazer de sê-lo, as luzes e cenários se transformam a todo instante pela liberdade de fazê-lo, enquanto os males da humanidade são gritados a cada diálogo. Trata-se de obras contendo personagens perversos dos quais o olhar da direção nunca se dissocia, por estar fascinado pelo potencial subversivo de suas ações. Denuncia-se a podridão do mundo, a falência da moral, a ruptura da sociedade, ou seja, conceitos tão amplos e vagos que jamais investigam causas, consequências nem responsáveis por tais fenômenos. Geralmente, os ditos filmes malvados lembram os sujeitos embriagados no balcão do bar, berrando que “este país está perdido”, ou os profetas enlouquecidos de praças públicas, alertando a todos e a ninguém que o apocalipse está próximo. Nestes casos, a provocação constitui um gesto retórico, espécie de desabafo pessoal pouco preocupado em ser compreendido pelo interlocutor, ou produzir algum efeito nele. Fala-se por falar, ou neste caso, faz-se cinema por fazer. Alguém há de discordar que o planeta esteja repleto de problemas? A afronta se transforma numa genérica constatação apolítica.

A Febre de Petrov (2021) ilustra de maneira eficaz este cinema de rebeldia juvenil. Petrov (Semyon Serzin) aperta o gatilho do amigo que tem um revólver posicionado dentro da boca. Miolos explodem pela parede, e o jovem sai tranquilamente pela porta da frente. Sua esposa assassina alguns homens que a perturbam na biblioteca e na praça pública. Alienígenas surgem nos céus para abduzir crianças. Nos flashbacks, adultos aparecem pelados. Cadáveres desaparecem dos caixões, depois retornam, levantam-se e saem correndo. Na chegada ao apartamento, o protagonista bate a cabeça em lustres e barras de ginástica penduradas às portas. Nas cenas seguintes, estes objetos estão altos demais para Petrov atingi-los. Aspirinas soviéticas causam efeitos colaterais inesperados, cenários se rasgam, mecânicos de fetiches pornográficos se concretizam. Nada acontece a estes personagens no sentido de serem responsabilizados por seus atos, ou de os conflitos surtirem qualquer consequência na trama. Assumindo a estética do delírio, o diretor Kirill Serebrennikov, a partir do romance de Alexey Salnikov, imagina uma ciranda de inconsequências.

“Não é porque você pode fazer qualquer coisa, que você deva fazer qualquer coisa”, dizia um experiente professor de direção de cinema. “Você pode criar metáforas absurdas, contanto que ofereça chaves de leitura ao espectador”, completava o professor de teoria da linguagem durante os estudos audiovisuais. Ambos expressam a ideia de que sentido e significado são relacionais, condicionados ao sistema narrativo e discursivo em que se encontram. Se não existe valor em si (nenhuma imagem ou ideia será sempre boa ou ruim, apesar do contexto em que se insira), também não existe significado em si - resta ao autor determiná-lo. Ora, o filme russo beira a aleatoriedade em sua acepção ampla da liberdade de criação e expressão. O autor oferece todos estes estímulos porque pode, e ninguém questiona seu direito de fazê-lo. No entanto, deve-se questionar o efeito destes recursos na história, na descrição dos personagens e na experiência do espectador. Serebrennikov interpreta a noção de vertigem do modo literal, fragmentando cenas e dispersando informações a esmo através da jornada do personagem. Ao longo de extensos 145 minutos, o recurso terá esgotado seu poder de choque ou surpresa. Na décima vez consecutiva que se embarca na mesma montanha-russa, os prazeres são menores.

Há cenas empolgantes, é claro, cabendo a cada espectador determinar aquelas que realmente lhe interessam, e outras que soam secundárias. Seria o flashback da infância, inteiramente em plano subjetivo em 16mm, o melhor momento da história? Que tal os superpoderes da mulher capaz de levitar? Em Cannes, valorizou-se a aparência de dificuldade, comum em premiações do gênero: A Febre de Petrov recebeu um prêmio paralelo de “melhor artista técnico”, talvez pelos longuíssimos planos-sequência onde a câmera entra e sai de ônibus lotados, percorre festas, caminha pelas ruas e sai de uma casa em chamas, antes da explosão final. Outros enxergarão um compilado de referências à cultura russa, desde a Dama do Gelo até a relação particular deste povo com o corpo, a morte e a literatura. Pode-se louvar a criatividade das direções de arte e som, no sentido estrito de propor algo inesperado, curioso, que se vê poucas vezes no cinema - caso da carnificina na noite de poesia e da agressão sexual a uma garotinha no transporte público. Os atores aparentam se divertir de verdade com tamanha efervescência, e o vigor se traduz em imagens. Existe investimento real por parte dos criadores nesta traquinagem de grande orçamento.

No entanto, questiona-se ao final a reflexão do cineasta a respeito da sociedade russa, da fragmentação das famílias, e da relação mal resolvida com o passado soviético. Há pouco discurso social para muita provocação artística - a única política praticada com sucesso diz respeito ao direito incondicional de expressão. Em contrapartida, Petrov, Petrova (Chulpan Khamatova), Marina (Yuliya Peresild), o amigo escritor (Ivan Dorn) e tantos outros se limitam a coadjuvantes de sua própria história: eles não fazem falta quando desaparecem, porque o interesse se encontra na alternância de focos, apesar dos personagens. O verdadeiro protagonista seria Serebrennikov, enfant terrible do cinema russo, capaz de provocar uma vez mais - mas estaria provocando a quem, exatamente? Quem se sente ofendido, perturbado, visado por este discurso? O problema desta forma abrangente de acusação se encontra na dispersão dos alvos, a ponto de, no final, jamais atingir ninguém em particular. É difícil determinar uma hipótese, um ponto de vista organizado a respeito de algum tópico em particular. Ao final de 2h30 de insanidade, a obra terá oferecido apenas isso: um vaidoso e oneroso delírio febril.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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