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Sinopse

Na casa dos 40 anos, Paula remói as experiências vividas nas férias passadas numa casa com piscina. Grávida do terceiro filho, numa casa calorenta e apertada, e sem ninguém por perto, ela decide instalar uma piscina no quintal.

Crítica

A princípio, A Felicidade das Coisas (2021) apresenta as qualidades habituais da produtora mineira Filmes de Plástico, responsável por obras excelentes como Ela Volta na Quinta (2015), Temporada (2018) e No Coração do Mundo (2019). Percebe-se o realismo muito bem trabalhado com o elenco, os diálogos, a direção de arte e de fotografia, apostando na luz natural. As conversas carregam os tiques, erros e vícios típicos da linguagem oral, e se provocam com as ferramentas comuns a qualquer núcleo de classe média. A qualidade de crônica habitual nos trabalhos de André Novais Oliveira, Gabriel Martins e Maurílio Martins se encontra no roteiro de Thaís Fujinaga, que apresenta cenas de fácil identificação, a exemplo da garotinha procurando o pacote de bolacha nas sacolas de compras; a provocação dos irmãos pequenos à beira-mar; os cigarros avulsos comprados pela mulher que, a princípio, não fuma, e a avó passeando perto da represa sem camiseta, por acreditar que ninguém está prestando atenção nela. Aproveita-se a beleza do real sem subvertê-la com reviravoltas espetaculares. Teria sido fácil à produção e à montagem ignorar o episódio dos “fortões da vizinhança” e a entrega de latinhas coletadas. No entanto, a autora faz destas pequenezas o foco de sua obra.

O melancólico título se relaciona, entre outros, com a compra de uma piscina que Paula (Patrícia Saravy) pretende instalar no terreno. Entretanto, disputas com o marido e problemas financeiros explicitam a dificuldade de seguir adiante com a obra, ainda que a piscina já esteja comprada, aguardando ao lado de um buraco aberto. A autora evita transformar este núcleo numa família consumista e superficial, apegada ao valor dos objetos. Pelo contrário, os itens de luxo se tornam secundários. As “coisas" às quais se apegam são mais amplas: o sonho da propriedade privada - rompido pela chegada de pescadores que utilizam o terreno como passagem ao riacho -, a vontade do adolescente em provar o seu valor, a tendência pragmática da avó em resolver os problemas sozinha. O marido se converte num espectro distante das imagens, cabendo ao espectador pressupor a aparência e o temperamento deste homem prestes a ter um terceiro filho, e enfrentando a crise econômica. O cenário de desolação parece se relacionar diretamente com o Brasil em período de transição, pós-golpe de 2016 e pré-eleição da extrema-direita, quando a classe média passou a sofrer com maior intensidade os efeitos das novas medidas econômicas. 

O elenco traz dois nomes confiáveis nos papéis principais: Magali Biff encarna com uma facilidade surpreendente a figura da avó carinhosa, autônoma e despojada. Ela representa um alívio cômico, embora jamais se renda a piadas fáceis. Sua personagem se equilibra com o perfil depressivo de Paula, interpretada por Patrícia Saravy. A atriz, que já tinha surpreendido em Baile (2019), transmite um cansaço palpável no olhar, embora seja marcada pela atitude firme na condução dos dilemas. Para ela, a piscina se torna um prenúncio de incompletude: o marido não se importa tanto com eles, a compra da casa soa precipitada, e o terceiro filho tende a complicar os laços. Talvez o filme pudesse aproveitar melhor a talentosa intérprete, com cenas potentes para além do imperativo do cotidiano. Ora, a autora prefere manter as situações em banho-maria, evitando alegrias esfuziantes ou tristezas profundas. Ela opta pelos meios conflitos e pela sugestão de crises futuras. Ao invés de filmar o furacão, registra o instante inicial em que ele se forma. Isso explica porque os pequenos Messias Barros Góis e Lavínia Castelari possuem papéis menores - embora tragam alguns conflitos próprios, eles se preparam para embates que virão em breve, sobretudo com a puberdade do garoto.

Apesar da ambientação palpável, A Felicidade das Coisas sofre com uma condução estática até demais. Pouquíssimas cenas rompem com a linearidade dos dilemas. Trata-se de um contexto crônico: até a conclusão, a construção sofrerá problemas idênticos; as fronteiras do terreno serão ultrapassadas pelas mesmas pessoas; as subjetividades permanecem inalteradas. Nenhum personagem trava uma relação afetiva com o lugar, nem aprofunda a percepção de si, do outro e do mundo. Em se tratando de poucos dias numa casa de férias, Fujinaga prefere operar na chave da ausência de mudanças, ao invés de introduzir guinadas externas. Ela ganha em verossimilhança, mas perde em intensidade: diversas sequências soam mornas, incapazes de fazer a trama avançar, ou de se relacionar com as questões anteriores e posteriores - caso da escapada noturna do filho mais velho. Enquanto alguns criadores optam por revelar ao espectador o momento em que algo se transforma, a diretora prefere observais dias triviais, que poderiam se reproduzir, sem variações, nas férias seguintes. Ela acredita na beleza da simplicidade, da convivência do dia a dia, mantendo a câmera firme nas esperas e sugestões. Os verdadeiros problemas ficam fora de quadro, representados pelo som de chamadas telefônicas.

Além disso, o resultado sofre com problemas de fotografia nas cenas noturnas escuríssimas, que talvez se beneficiem de uma projeção muito bem calibrada em salas de cinema, mas perdem quase todas as nuances no formato digital da 45ª Mostra. A montagem, apesar de fluida, aposta na segmentação em blocos através de um longo e abrupto black, que talvez desperte a aparência de erro na projeção, antes de se perceber que se trata de uma opção estética. O projeto resulta num belo longa-metragem de estreia, transmitindo qualidades que alguns diretores experientes nunca alcançam. No entanto, falta ambição estética e narrativa à condução, que talvez aposte numa compreensão excessivamente literal do naturalismo: é possível introduzir poesia sem romper com o banal; apostar em respiros sem deixar de lado o foco central, e subverter expectativas na elaboração da imagem sem chamar atenção excessiva a maneirismos de câmera e luz. Tudo se encontra na questão das medidas. Resta a sensação de que Fujinaga pode oferecer trabalhos ainda mais preciosos num futuro próximo.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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