Crítica
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Sinopse
Crítica
O personagem que retorna transformado ao interior depois de uma jornada na metrópole é recorrente no cinema. Em Barravento (1960), emblema do Cinema Novo brasileiro, o homem que provou os manjares da cidade grande volta à pequena vila de pescadores que o viu crescer para questionar as crenças e os modos de vida da sua gente. Em Nas Garras do Vício (1959), a pedra fundamental da Nouvelle Vague francesa, um sujeito reencontra amigos e amores do passado no interior estagnado/decadente. Em ambos os casos há o choque entre os que foram e ficaram, com ênfase nos primeiros. No longa-metragem colombiano A Ferrugem – um dos destaques da mostra competitiva do 11º Olhar de Cinema de Curitiba –, o interesse repousa sobre o rapaz que permaneceu num ambiente congelado no tempo. Portanto, o protagonista não é alguém que testemunhou o “atraso”, mas quem se tornou parte de uma paisagem estagnada. Mas, antes que essa tensão se estabeleça, o cineasta Juan Sebastian Mesa documenta vagarosamente a rotina de Jorge (Juan Daniel Ortiz Hernandez), em meio a isso apresentando os aspectos fundamentais de sua personalidade e de seu comportamento. Além da rotina esmiuçada, é importante para essa construção atmosférica a relação entre as pessoas e os cenários. O filme se passa numa minúscula vila caracterizada por caminhos íngremes e escarpas.
A câmera se demora em movimentos e tarefas banais. José mora num dos platôs de uma montanha que lhe serve de terra para cultivo do café. Ele transita por esse ambiente inóspito, conversa com os poucos vizinhos e parentes que residem nas cercanias e cuida sozinho do avô acamado. A relação que o protagonista de A Ferrugem estabelece com o ambiente é fundamental para a compreensão de sua posição nesse mundo que tende a definir a metrópole como o lugar do futuro e o campo como um sinônimo de atraso. Juan Sebastian Mesa enfatiza a dificuldade para fazer coisas simples, tais como deslocar-se ao povoado mais próximo a fim de vender a colheita e comprar mantimentos. Mas, curiosamente, mesmo que o aspecto geográfico seja tão importante, não é oferecida ao espectador uma noção de distância e/ou localização. Por exemplo, não é possível definir com alguma precisão a distância entre a casa de Jorge e o vilarejo ou mesmo os demais intervalos entre um cenário e outro. A isso diz respeito uma evidente vontade de, primeiro, se concentrar no trajeto emocional do personagem e, segundo, extrair capital dramático da ligeira desorientação espacial. Até mesmo a utilização do tempo (vagaroso, quase parando) tem um sentido: visa transmitir um pouco de como Jorge sente o relógio andar. Assim, os primeiros minutos do filme são desafiadores. Até nos acostumarmos.
Juan Sebastian Mesa não escancara crises, choques e conflitos. Tampouco utiliza ferramentas expositivas para desenhar as pessoas. Sabemos de Jorge muito mais a partir do que ele faz (e do que não faz) do que necessariamente por conta de algum desabafo ou de algo que o valha. Sua recusa de fazer certas coisas naturais à juventude, mesmo a da região, insinua duas coisas: que ele é um sujeito responsável (pois a “desculpa” é sempre o trabalho) e que acaba se escondendo atrás dessa responsabilidade. Como o realizador nos dá tempo para conhecer e investigar personagens e simbologias, sobressai o trabalho de Juan Daniel Ortiz Hernandez na construção dessa figura ensimesmada que vivencia uma contradição constante. Por um lado, Jorge parece relativamente acostumado com aquela vida rotineira de agricultor que cumpre as suas funções. Mas, por outro, deixa escapar certos anseios de emancipação. O interessante é que A Ferrugem não se decide entre o Jorge resignado e o inconformado. Ambos estão ali, coexistindo num mesmo corpo que tem muito de jovem, mas que também carrega sinais precoces de velhice. Se os primeiros minutos do filme são desafiadores pela imposição de um ritmo arrastado, os demais são bem mais recompensadores. A mudança de chave vem quando estamos devidamente habituados àquele universo de natureza singular.
Mesmo quando os amigos e o antigo amor chegam à cidade para participar da festividade religiosa, o filme não sublinha de modo agudo os choques entre os que ficaram e os que foram. É melancólica a tentativa de Jorge “se adequar” ao cortar o cabelo para parecer descolado. Mas, os diálogos não martelam diferenças, pois elas são perceptíveis na forma de falar, de vestir, de ousar e de vivenciar as situações. Juan Daniel Ortiz Hernandez transita com consciência pelos lugares-comuns desse tipo de história, lançando mão da namorada que não é mais a mesma, dos parceiros que estão em outra "vibe" e das tentativas de coalisão em prol de uma experiência conjunta. No entanto, diferentemente de boa parte dos filmes que abordam essa situação, aqui o foco é no sujeito que permaneceu num espaço considerado obsoleto. O avô acamado e o cultivo manual da terra são sinais desse passado que Jorge assimila como seu presente e, quiçá, como futuro. Por mais que ele dê sinais de querer pertencer em alguma medida ao mundo agitado dos amigos metropolitanos, fica cada vez mais evidente que há algo próprio daquela geografia física e emocional nele muito enraizada. A ênfase é na experiência, não numa jornada. No fim, não se trata de permanecer ou de ir embora, mas de possibilidades e impossibilidades.
Filme assistido durante o 11º Olhar de Cinema de Curitiba, em junho de 2022.
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