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Sinopse

Um casal chega ao local do seu casamento na véspera da cerimônia. Mas, os dois acabam encontrando algo hostil.

Crítica

O Rape and Revenge (Estupro e Vingança, em português) é um subgênero do horror cujas características principais vêm das engrenagens sensacionalistas do exploitation, de um cinema próximo dos extremos. Em linhas gerais, possui tramas marcadas por mulheres sobreviventes a violências sexuais que posteriormente se vingam dos abusadores. Quando a vítima acaba morrendo, muitas vezes os familiares se incumbem da vendeta. Atualmente, há inúmeras discussões em torno desse tipo de produção que teve o seu apogeu nos anos 1970. Dentre as problematizações, estão as falsas simetrias entre estupro (ato decorrente da lógica patriarcal de poder/dominação) e o sofrimento do estuprador imposto pelo olho por olho, dente por dente. A Festa Silenciosa inicia com os preparativos do casamento de Daniel (Esteban Bigliardi) e Laura (Jazmín Stuart). E a festa acontecerá no suntuoso sítio do pai dela, anfitrião impositivo, algo perceptível na passivo-agressividade desse macho alfa. A julgar por certos diálogos, esse homem é daqueles capazes de resolver os problemas de amigos e familiares (só deles) com uma ligação. As conversas indicam as distâncias entre os futuros sogro e genro. Os dois são representantes diferentes de masculinidades que, em determinado ponto, serão convocadas a um mesmo lugar.

Depois de levar um fora do noivo (ele não estava no clima para transar à tarde), Laura sai pelas redondezas até encontrar a tal festa silenciosa. Cada participante da balada tem um fone de ouvido, ou seja, o som não é comum. A mistura de tesão, bebida alcoólica e vontade de transgredir faz Laura se afastar com um rapaz a fim de ter um pouco de intimidade e prazer. O que aconteceu longe das vistas dos demais será mostrado aos poucos em A Festa Silenciosa por meio de flashbacks e das filmagens do momento com múltiplos crimes. A estratégia de revelar a circunstância gradativamente serve para tentar prolongar a dúvida e a tensão. Porém, isso é quase irrelevante, tendo em vista a carga sugestiva do primeiro flashback. Nele vemos Laura e Gabo (Lautaro Bettoni) se beijando e um vulto se aproximando, desfocado ao fundo. Ali fica evidente que alguém indesejado se intrometeu e causou o trauma de Laura. Mas, então qual é o valor de enxergar o que efetivamente ocorreu? No fim das contas, para percebermos que, ao menos, três crimes foram cometidos por homens contra a mulher: um deles a violentou; o outro observou a brutalidade e não fez nada para impedir; e o terceiro filmou tudo com o celular, tampouco agindo em prol da vítima. Sendo assim, não apenas um merecia morrer, mas todos?

Um dos problemas do Rape and Revenge é a construção da ideia de que alguém merece morrer. Há em A Festa Silenciosa uma disparidade entre as motivações de Laura e as dos homens a quem supostamente deve reverência: o pai e o noivo. É compreensível que ela deseje impor sofrimento a seus algozes, por mais condenável que seja qualquer ato de violência. Mas, Daniel e o futuro sogro são homens em busca da reparação de suas honras. Simples assim. Puxado pela natureza do sogro, Daniel faz o que se espera dele dentro da moldura patriarcal: tenta punir os que violaram os direitos que somente ele teria sobre Laura. Portanto, instintivamente, os dois vingadores não estão necessariamente preocupados com a saúde física e mental da vítima, mas com o questionamento de seus estatutos de dominação em relação a ela. Mesmo sutilmente, o mais velho prepara Daniel para substitui-lo como “o homem” da vida de Laura desde o começo, vide a cessão do quarto aos pombinhos e depois a provocação de uma resposta “à altura” diante dos crimes cometidos no terreno vizinho. Em meio ao cabo de guerra psicológico entre homens exercendo os poderes a eles concedidos de modo estrutural, a Laura cabe o mero lugar de vítima, da mulher cujo sofrimento acaba servindo para reafirmar ainda mais a força masculina.

A Festa Silenciosa poderia enfatizar melhor a conexão entre os crimes e o poder masculino. Também poderia trabalhar melhor as convenções do Rape and Ravenge, sobretudo a via de mão dupla falaciosa sobre merecimentos. Laura não “merece” sofrer as violências por causa de sua disponibilidade sexual e da traição ao futuro marido. Sua aventura extraconjugal não é digna de punição. Pensar o contrário seria incorrer num moralismo atroz. Da mesma forma, o estuprador e seus comparsas não “merecem” ser perseguidos e retalhados como se fossem indignos de viver. Essa dupla violência acaba perpetuando a centralização do poder no âmbito masculino, sendo o feminino colocado constantemente em estado de vulnerabilidade. Pena que os cineastas Diego Fried e Federico Finkielstain não aprofundem o diagnóstico, se contentando em abrir brechas à compreensão do espectador atento à representação dos gêneros na narrativa. Por conta da falta de consistência de certos termos do discurso – como as nuances da relação do casal e as equivalentes da submissão da filha ao pai dominador –, o filme não torna os questionamentos tão incisivos quanto poderia. Ainda assim, permite interpretações sobre os papeis ocupados por homens e mulheres, tanto na sociedade quanto no subgênero controverso.

Filme assistido durante o 13ª Cinefantasy, em junho de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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