Crítica
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Sinopse
Em crise existencial durante a preparação para interpretar Jocasta numa montagem da peça Édipo Rei, Maria vivencia uma experiência mística que a leva a repensar seus conceitos de maternidade e feminilidade.
Crítica
Dirigido por Juan Posada, A Filha do Caos apresenta Maria (Bruna Spínola, também corroterista), atriz situada entre duas concepções divergentes de maternidade/feminino. A primeira vem da Maria mãe de Jesus Cristo, nazarena que, de acordo com as escrituras cristãs, concebeu o messias destinado ao sacrifício para tirar os pecados do mundo. Não houve sexo, não houve carnalidade e, portanto, não houve “pecado” na conceição do salvador. A segunda surge da célebre Jocasta, figura da mitologia grega e uma das personagens mais famosas da peça Édipo Rei. Filha de Menocenes e mulher de Laio (rei de Tebas), ela deu à luz a Édipo, mais tarde assassino do próprio pai e seu amante. Jocasta vive o incesto, considerado uma heresia mortal e um tabu. No longa-metragem, a atriz de nome Maria está mergulhada numa crise existencial durante os ensaios para interpretar Jocasta em Édipo Rei. Portanto, ela é afetada por esse processo de imaginar uma antítese dessa maternidade santificada. E o cineasta manifesta isso como um pesadelo interno forjado externamente pela estética neo-expressionista, cujas raízes, evidentemente, estão no expressionismo. E, ao falarmos desse notável movimento artístico de vanguarda, somos imediatamente arremessados no Expressionismo Alemão.
O Expressionismo Alemão se impôs (inclusive comercialmente) no cinema germânico depois da Primeira Guerra Mundial. Se apropriando dos princípios estéticos que ganhavam protagonismo nas artes plásticas da época – e cujas premissas compreendiam deformações da realidade objetiva –, o cinema dava conta de expressar fenômenos subjetivos e sensações. De maneira semelhante, Juan Posada mostra a via crúcis de Maria, não por meio de verbalizações ou mesmo do acúmulo de relações imediatas de causa/efeito. Ele utiliza um conjunto de imagens, procedimentos e sons com forte carga simbólica para isso. A protagonista é vista em seu apartamento num embate metafórico entre a Maria cristã e a Jocasta mitológica. Ela é atravessada pelo movimento abrasivo dos dogmas que servem como barreiras emocionais à compreensão de uma mulher/personagem que personificou o tabu da maternidade distante da santidade. Bem ao gosto do cinema expressionista, a montagem de A Filha do Caos (assinada por Renato Vallone e Juan Posada) privilegia a descontinuidade, a criação de uma forte impressão de desorientação que serve à projeção formal das angústias da protagonista. E a direção de arte criada por Bruna Spínola auxilia de modo fundamental esse desenho visual de uma realidade subjetiva sendo tratada como um mundo interior em colapso e prestes a desabar.
A Filha do Caos não é aquele tipo de filme em busca de respostas satisfatórias para perguntas claramente formuladas. É preciso que o espectador fure certos bloqueios armados pelos anos de consumo confortável de um cinema narrativo mais palatável para acessar o âmago dessa narrativa cifrada que se apropria não apenas das lógicas do expressionismo, mas também de algumas caras ao teatro. Paralelamente às visões de Maria sendo consumida em angústia no apartamento – nisso (e em outras coisas) se assemelhando à personagem de Catherine Deneuve em Repulsa ao Sexo (1965) –, somos apresentados a trechos da encenação de Édipo Rei, especialmente com Édipo de olhos automutilados se movendo como se fosse uma prova viva das tragédias geradas por essas “maternidades não santificadas”. No entanto, o longa não está o tratando como um resultado moralista daquilo que destoa do cristianismo, mas enquanto uma manifestação da agonia sentida pela Maria atriz, a oprimida pelos dogmas. É como se os anos de formação católica gerassem à personagem de Bruna Spínola uma culpa personificada por esse agente do "pecado". Ainda que tudo aponte para uma radicalização do plano simbólico, às vezes até mesmo as alegorias ficam girando em falso por conta da repetição. Em determinados instantes, a produção se torna refém de sua obscuridade que acaba fechando algumas portas.
Às vezes, o roteiro de A Filha do Caos aposta numa reiteração pouco produtiva – como nos encontros com a mulher em situação de rua que pode ser a Maria de Nazaré da atualidade. No entanto, mesmo que escorregue um pouco na falta de intensidade de determinadas passagens, o filme apresenta um percurso instigante em que a representação da angústia feminina se torna a grande e verdadeira protagonista. A atriz e coautora Bruna Spínola constrói de um modo febril essa mistura de culpa e dúvida que atravessa expressivamente a sua personagem. Maria é mais do que uma pessoa de carne e osso vivendo um martírio pessoal. Por conta da estética aplicada a essa trajetória de sofrimento íntimo, ela se torna um emblema dos pesos que recaem sobre as mulheres como as guardiãs da concepção da vida. Por isso não há uma investigação das singularidades. Maria se torna um corpo feminino atravessado por tantas crises derivadas desse embate entre figuras que representam ideias conflitantes de maternidade e, por conseguinte, do feminino. Entre a santa e a pecadora, Maria tem sua humanidade posta em xeque, como se vivenciasse o antagonismo de feminilidades possíveis. Pena que o filme não enfatize a potência dos espelhos e das máscaras ao embaralhar realidade, representação e delírio. Ainda assim, operando entre o cinematográfico e o teatral, ele lida com mitos, doutrinas e convenções.
Filme visto no Festival do Rio em outubro de 2022.
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