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Crítica


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Sinopse

Aos 14 anos, Joana aparece para passar uma semana na companhia do pai, Renato, humorista que se apresenta em diversos ambientes interpretando o personagem Silvanelly. E nessa semana eles aprenderão a se reconhecer.

Crítica

Em tempos sombrios, nada mais recomendado aos que buscam por sinais de esperança do que se guiar pelo sentido contrário. E, a partir desse olhar propositalmente oposto, emitir as melhores vibrações. Essa parece ser a ideia de Pedro Diógenes com A Filha do Palhaço, oitavo longa do cineasta cearense premiado no Brasil (Festival do Rio, Tiradentes) e no exterior (BAFICI, Santa Maria da Feira, Queer Lisboa). Apesar de ter sido pensado anos atrás, as filmagens só foram ocorrer entre 2020/2021, em plena pandemia e quando o país se encontrava sob um governo de extrema direita. Ou seja, eis aqui um cinema de refúgio, em busca de um lugar melhor para si e para aqueles que dele se apropriarem. Missão essa alcançada com efeito, tanto no âmbito da ficção, como também pelo sentimento gerado em sua audiência. A procura de um pelo outro, a necessidade de conexão e encontro, reatando laços há muito afastados, mas nunca perdidos. É sobre isso que esse discurso trata, sem didatismo ou exageros, mas através das pequenas coisas, os detalhes insignificantes que, quando somados, terminam por fazer a diferença.

Silvanelly sobe ao palco, diante de uma plateia ansiosa por sua performance. A diva pega o microfone e, em instantes, domina as atenções. Fala verdades e absurdos, brinca com esse, aquele e com o mais distante, sem distinção de cor ou idade, bolso ou educação. Todos são iguais quando na sua frente. Mas ela existe apenas ali, com os holofotes ligados e as atenções voltadas em sua direção. Assim que as luzes se apagam e o show acaba, volta a ser Renato (Demick Lopes), um homem solitário, que geralmente termina suas noites em um bar qualquer para um último gole, ou em casa, tendo apenas as lembranças como companhia. Essa falta de rumo ganha um novo sentido quando Joana (a novata Lis Sutter) aparece. A garota, não mais do que uma adolescente, vai até ele com intenções sólidas: sabe o que quer, e está apostando no que dele espera como retorno. Quando reunidos, não há surpresas, por mais que estarem juntos soe quase insólito. Pai e filha, há muitos separados, mais uma vez aprendendo a lidar um com o outro.

Diogenes, que escreveu o roteiro em conjunto com Amanda Pontes e Michelline Helena – duas mulheres, portanto – sabe que é importante dar voz e razão aos dois lados dessa dinâmica. Felizmente, não se trata do clichê do “homem gay (ou bissexual) que descobre ter uma filha crescida e se vê obrigado a lidar com ela”. Essa história já foi contada, inúmeras vezes, e o que acrescentar ao que se mostra cada vez mais desgastado? Pelo contrário, essa estrutura é usada apenas como ponto de partida para o relato ao qual se propõe. Renato e Joana são protagonistas, mas mais importante do que o fato de estarem novamente lado a lado e o que irão fazer a seguir, serão as emoções que irão fluir entre eles, e em cada um em separado. A menina quer um pai – não o melhor, não o mais perfeito, não aquele que lhe sanasse todas as dúvidas e aflições, mas apenas isso: o homem que por ela estivesse, independente da situação. Esse, por sua vez, há tanto se viu levado para longe dessa interação que parece ter esquecido o que é ser o responsável por alguém, ser a voz da razão, o exemplo a ser seguido. Os dois precisam buscar em si como se tornar aquilo que o outro espera.

Grande parte do sucesso dessa empreitada se deve à amplitude da atuação de Demick Lopes. Parceiro habitual do diretor (Inferninho, 2018), volta à cena agora com ainda mais destaque, reafirmando o talento e a versatilidade que muitos talvez tenham descoberto apenas a partir de Greta (2019). De sua versão drag até se ver obrigado a encarnar uma paternidade forçada, ainda que desejada, percorre extremos sem permitir que esses esforços eclipsem uma delicada atenção aos detalhes e pormenores, como olhares e gestuais, quase discretos o bastante para passarem desapercebidos, mas presentes o suficiente para serem notados a ponto de pesarem na balança. Os tropeços que dá ao lado da filha, tratando-a num misto de nova amiga com antiga responsabilidade, ganha novos ares quando outros agentes interferem no núcleo que os dois aos poucos constroem, como o flerte que o pai estabelece com o artista de rua vivido por Jesuíta Barbosa (em participação pontual, porém decisiva), ou o retorno da mãe (Ana Luiza Rios, que havia trabalhado com o diretor em O Último Trago, 2016, surgindo no desfecho com duas notícias – as motivações deste reencontro e o futuro dessas duas mulheres – capazes de alterar as percepções até aquele momento). Entre altos e baixos, pequenos feitos e inescapáveis deslizes, eis aqui uma família contemporânea, retrato de um país que sofre, mas luta para que seus afetos prevaleçam.

Demick Lopes é um ator tão completo que até seus parceiros de cena melhoram quando ao seu lado. O jogo que estabelecem, principalmente o que se percebe com Sutter, uma jovem dando seus primeiros passos nesse âmbito, é fundamental para que um inevitável despreparo ao abordar tantas e relevantes questões se torne mais acessível ao espectador, que desta reunião se vê frente a elementos que vão além da superfície. Diógenes, assim, trabalha com figuras clássicas – o mascarado que a todos faz rir, mas por dentro tem muito a lamentar, assim como as perdas que se acumulam pelo caminho, os ressentimentos não trabalhados, os anseios que por tanto tempo se preservam e fortalecem – mas permitindo que o conjunto, acima de tudo, deixe de lado provocações capazes apenas de desviar as atenções para centrar seu olhar no que realmente importa: os laços que perduram a despeito de quaisquer adversidades e a união que se renova a partir de vontades simples, como o desejo de estar junto e a importância do diálogo como força transformadora. A Filha do Palhaço, assim, é tanto sobre os dois no centro da ação como a respeito daqueles dispostos a refletir sobre esses assuntos, pelas trocas possibilitadas através da energia que emanam e por uma constante necessidade do querer, um desejo que tanto aproxima como protege.

Filme visto em Fortaleza, durante o 32º Cine Ceará (2022)

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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