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Sinopse

Samuel mora sozinho numa ilha isolada em algum lugar do Caribe colombiano. Exímio mergulhador, ele vive da quase extinta prática da pesca submarina em mergulho livre. Um dia, sua filha transexual Priscila bate sua porta em fuga, forçada a voltar ao lar para se esconder. Seus mundos não poderiam ser mais distantes. Samuel não consegue aceitar Priscila e ela não consegue perdoá-lo por eventos do passado.

Crítica

Samuel (Roamir Pineda) é pescador e vive numa ilha caribenha. Compreensivo e acolhedor com o filho de um colega, ele é incapaz de demonstrar semelhante ternura à filha transexual Priscila (Nathalia Rincón) quando ela retorna para debaixo de suas asas à procura de proteção. O homem embrutecido pela solidão não consegue demonstrar senão asco pela jovem que solicita guarida e um colo no qual se aninhar. Priscila alega ser perseguida por paramilitares dispostos a matá-la pela falta do pagamento de uma dívida – o motivo da fuga não é esse, mas também não vem ao caso, a não ser como fato novo que confere outras possibilidades à trama mais à frente. A tensão estabelecida entre pai e filha é construída em torno dos lugares-comuns desse tipo de situação na qual algo causa desgosto em pais tradicionais. Priscila não é bem-vinda, o que fica claro no tratamento a pontapés que o pai dispensa a ela. O homem chega ao cúmulo de trancá-la do lado de fora durante uma chuva torrencial. Pela maneira como as coisas andam, fica evidente que estamos diante de um trajeto lento de convencimento, ou seja, de um daqueles filmes em que a dureza dos conservadores vai sendo gradativamente rachada pela insistência de um oprimido resiliente. Tendo isso em vista, a abordagem é bastante convencional, os caminhos são claros e as nuances se perdem à medida que “o amor cresce até vencer”, dissipando rusgas por “mágica”.

Em A Filha do Pescador nem sempre a apatia de Samuel se converte em introspecção expressiva. O papel exige de Roamir Pineda que ele seja metaforicamente equivalente ao território: uma ilha limitada e quase fechada à visitação externa. Aos poucos, a trama nos dá subsídios para compreender que a solidão é a grande culpada pelo ressentimento do pescador, pois a esposa e a filha fugiram à cidade grande em busca de uma vida menos morosa e, quem sabe, escapando das tendências violentas desse sujeito que parece preferir a morte a aceitar a filha transexual. Estreante no comando de longas-metragens, Edgar Alberto Deluque Jacome utiliza uma mise èn scène simplória e convencional para colocar os elementos em cena e, por exemplo, emoldurar a disputa entre pai e filha pela primazia do discurso. Os planos são carentes de inventividade. As conversas são geralmente em plano e contraplano (sem variações), as tomadas internas da casa à beira-mar são excessivamente semelhantes umas às outras e nem os planos da natureza conseguem extrair da paisagem a exuberância poética que faria bem como moldura lírica. E essa ausência de entusiasmo da câmera depõe muito contra o resultado, colocando-o à mercê tão e somente da torcida pela reconciliação à qual somos convidados. Nem mesmo a hipocrisia da comunidade dos pescadores ribeirinhos é utilizada como item de um painel coletivo consistente.

Edgar Alberto Deluque Jacome, também roteirista de A Filha do Pescador, mostra Priscila sendo psicológica e emocionalmente torturada pelo pai turrão, isso enquanto ela tenta encontrar uma solução para escapar daquele lugar em relativa segurança. Portanto, a jovem trans não deseja permanecer, apenas utilizar aquele refúgio como parada intermediária entre o perigo e a salvação, uma vez que é realmente perseguida e tem seu nome estigmatizado nos jornais como criminosa. No campo das interpretações, Nathalia Rincón faz um trabalho bem mais interessante do que os demais membros do elenco, pois na sua composição a fragilidade da personagem Priscila é constantemente compensada por atitudes que demonstram uma força. Diante das frequentes agressões do pai que não aceita a filha como mulher, desferindo toda sorte de clichês homofóbicos e preconceituosos, Priscila permanece firme por necessidade, assim reafirmando o seu estatuto de sobrevivente. No entanto, quando encaminha a resolução e o esperado final feliz (ao menos na relação entre pai e filha), o realizador opta pelos caminhos da simplificação, mostrando que o cuidado de Priscila tem com o pai fragilizado por uma situação específica é o grande responsável por quebrar o gelo e iniciar um processo duplo de cura. O problema é que o filme não enfatiza como poderia a carência paterna como responsável por seu comportamento.

Aliás, a tese está posta: Samuel não aceita a filha trans porque é um homem maltratado pela vida, feito solitário talvez por consequência de sua personalidade pouco convidativa, mas ainda assim um sofredor que transformou a dor em argamassa para construir um muro ao seu redor. Em parte, a frieza emocional pode ser culpa da direção, pelos motivos citados anteriormente. Mas, também pode ser imputada à interpretação rígida demais de Roamir Pineda, cujo desânimo nem sempre pode ser creditado à natureza ou à condição do personagem. Claro que é bonita e inspiradora essa lenta e gradual reconciliação entre pai e filha, mas a abordagem funcional dos demais elementos (machismo, preconceito, hipocrisia, etc.) enfraquece o conjunto e o limita somente a esse percurso de reaproximação entre uma filha marginalizada e um pai teimoso. Priscila é o tempo todo chamada por seu nome de batismo, apenas citada como mulher dentro de uma perspectiva desdenhosa dos demais pescadores. Isso é uma forma de mostrar a que violências ela é submetida. Mas, nesse sentido da recorrente lembrança agressiva da pretérita identidade biológica masculina de Priscila, há uma escolha diretiva questionável: quando pai e filha finalmente mergulham juntos e as cenas são entremeadas pelos lampejos de memória do homem imergindo com Samuelzinho, então o seu filho. Fica muito clara a perspectiva dominante de Samuel. Priscila até poderia sentir saudade, mas dificilmente se representaria como menino.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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