Crítica

Se muitos reclamam da impressionante regularidade de Woody Allen, que faça chuva, faça sol a cada ano entrega um novo filme, em um ritmo que mantém há deçadas, imagina como era no auge dos Trapalhões – período que vai da metade dos anos 1970 até o final dos 1980 – quando dirigiam, escreviam, estrelavam e produziam não um, mas dois novos filmes por temporada? Seus lançamentos eram sempre durante as férias da garotada, um no inverno, outro no verão. Com apenas seis meses de intervalo, seria praticamente impossível aliar quantidade com qualidade. E mesmo que aos poucos tenham começado a se preocupar mais com os roteiros e detalhes técnicos, como fotografia e trilha sonora, inevitavelmente haviam pontos baixos. E um desses é, sem sombra de dúvidas, esse A Filha dos Trapalhões.

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A história é tão simplista que poderia ser resumida em uma frase: moça sem condições acaba dando sua bebê recém nascida para adoção, mas numa confusão a criança vai parar sob os cuidados de quatro vagabundos, que cuidam da pequena até que a mãe a reencontre. É apenas isso e nada mais. Há alguns toques de crítica social e certas decisões que, atualmente, deixam o público questionando como foram possíveis que alguém não só as levasse a sério, como chegassem ao ponto de concretizá-las na tela. Mas ainda assim estes são elementos pouco aprofundados, que situam o desenrolar da história aqui e acolá, sem surpresas nem consequências. Era só mais uma oportunidade de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias fazerem das suas, ancorados pelos rostos bonitos do galã Ronnie Von – que hoje virou uma caricatura de apresentador de televisão – e da mocinha Myrian Rios – mais conhecida agora por ter sido Deputada Estadual pelo Rio de Janeiro e por sua militância como evangélica.

Inspirado no clássico O Garoto (1921), de Charles Chaplin, teve roteiro escrito por profissionais de respeito, como Gilvan Pereira (Os Saltimbancos Trapalhões, 1981) e José Joffily (Quem Matou Pixote?, 1996). Mas eles não estavam sozinhos nessa tarefa, e é de se suspeitar que tenha sido através do envolvimento de Renato Aragão e de Dedé Santana (esse também assumindo a direção) que o tom de crítica tenha sido amenizado em prol de mais trapalhadas e confusões. Por exemplo, o bebê não é simplesmente abandonado – é roubado por traficantes internacionais que os vendem a casais europeus. Quando um caminhão sofre um acidente no meio do trânsito e diversas galinhas – a carga que estava sendo transportada – se perdem nas ruas, dezenas de transeuntes se atiram esfomeados em busca delas, revelando um povo pobre e desesperado. E há playboys que se divertem atirando com armas de fogo contra mendigos, apenas por diversão. Os Trapalhões se encarregam de tirar o caráter dramático dessas sequências com muita piada visual e diálogos rápidos. Mas o contexto que tais passagens carregam não pode ser ignorado.

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A Filha dos Trapalhões revela-se também um dos mais longos de toda a filmografia da trupe, com quase 110 minutos de duração. Isso não se dá por um inchaço do enredo, mas, sim, para abrir espaço para os quatro protagonistas fazerem em cena aquilo que seus milhares de fãs tinham à disposição todos os domingos na televisão. Isso porque lá pelas tantas o elenco inteiro se vê em um circo, com os Trapalhões fazendo das suas, a mãe desesperado do alto do picadeiro reencontrando sua filha há tantos anos perdida e os bandidos merecendo um justo castigo. É uma fábula de faz de conta, e como tal era vendida na época. Porém as tintas que emprega são fortes demais, dona de cores que até hoje impressionam pelo retrato de uma sociedade que ria para não chorar. Infelizmente, como só o cinema pode constatar, um realidade que permanece viva, mesmo tanto tempo depois.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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