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Sinopse

Uma mulher está desfrutando suas férias à beira-mar quando ela conhece uma jovem mãe hospedada nas proximidades. Sua obsessão pela desconhecida traz à tona velhas e dolorosas memórias.

Crítica

Leda quer apenas descansar. Em um merecido período de férias, a professora universitária aporta em uma paradisíaca praia na costa grega em busca de momentos de relaxamento, se entreter com seus livros e anotações, curtir banhos de mar e aproveitar jantares solitários, longe de tudo e de todos. Mas por mais que busque o isolamento e a desconexão, “nenhum homem é uma ilha”, como afirma o poeta John Donne. E aos poucos ela começa a se “contaminar” por aqueles ao seu redor: o zelador do apartamento que aluga, o rapaz do bar à beira mar, a família barulhenta que chega dias depois. Isso não irá apenas interromper esses instantes de paz. Há mais em jogo, e não custa ao espectador descobrir do que se trata. Se hoje essa mulher aparenta se bastar, há motivos para isso. Em A Filha Perdida, a diretora de primeira viagem Maggie Gyllenhaal propõe um mergulho ao íntimo feminino, discutindo com propriedade questões como casamento e fidelidade, maternidade e herança genética, profissão e vida familiar. O melhor, porém, é que exerce esse olhar a partir de um local de absoluta sensibilidade e assumidamente sensorial. Uma escolha muitas vezes arriscada, mas que aqui se mostra certeira.

A primeira destas felizes decisões está na escalação de Olivia Colman como protagonista. A atriz, conhecida por performances explosivas, como em A Favorita (2018) – que lhe rendeu o Oscar – ou como a maravilhosa vilã de A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas (2021), é também hábil em atuações subliminares e contidas, como as vistas em Meu Pai (2020) ou na série The Crown (2019-2020). Pois é nessa linha que desenvolve Leda, alguém que parece estar sempre no limite, mas retendo qualquer excesso a todo custo. Aliás, é assim que se define em cena: “como alguém sempre prestes a explodir, sem, no entanto, dar vazão a essa vontade”. A resposta que ouve é definitiva: “isso não soa nada como felicidade”. Leda não é uma mulher feliz. Aliás, longe disso. Mas é a melhor versão de si que consegue ser. Tem suas falhas, seus defeitos, seus traumas e complicações. “Eu sou uma mãe desnaturada”, diz a tradução para o original “I’m not a natural mother”, ou seja, “não sou uma mãe que possui naturalmente os instintos maternos”. A versão em português parece indicar uma pessoa má, o que até pode ser, mas vai além disso. Trata-se de alguém que não se pensa apta a ter outros dependendo dela. Ainda mais aqueles que funcionam como um espelho de suas (muitas) falhas e (poucos) acertos.

Quando uma criança desaparece entre cadeiras de repouso, roupas de banho e brinquedos de areia, imagina-se que o título dessa história mereça ser levado de forma literal. A menina é logo encontrada, mas sua boneca favorita some sem deixar vestígios. Quer dizer, quase isso. Os pais não sabem onde ela pode ter ido parar, a garota chora por manha e por ter perdido algo que não prestou atenção com o devido cuidado. Mas a audiência sabe onde o brinquedo está: na bolsa de Leda. Nem ela mesma sabe por que a pegou. Talvez por um pequeno sentimento de vingança – fora maltratada por aquele grupo de estranhos, de forma grosseira, e essa foi sua oportunidade de revidar. Porém, não é apenas isso. Está no próprio passado as causas dessa atitude. A pouca paciência que tinha com as filhas, os desentendimentos constantes com o marido, a incapacidade de lidar com tantas responsabilidades que não via como suas, por mais que fossem, ao menos em parte. Essas lembranças são quase assombrações, que ressurgem como avisos dos passos em falso que deu e dos efeitos com que hoje se vê tendo que enfrentar. O que os recém-chegados tem pela frente é uma estrada pela qual ela percorreu décadas atrás. E se não há saudades, ao menos persiste a memória do que persiste ao seu lado.

Há uma sensação constante de perigo durante o desenrolar dos eventos enfileirados por Gyllenhaal. Uma percepção válida que colabora com o entendimento que a realizadora busca. Afinal, não é fácil ser mãe. Atriz indicada ao Oscar (concorreu como coadjuvante por Coração Louco, 2009) e membro de uma família de astros (o irmão, Jake, estrelou sucessos como O Segredo de Brokeback Mountain, 2005, e Homem-Aranha: Longe de Casa, 2019, e tanto a mãe quanto o pai, Naomi Foner e Stephen Gyllenhaal, são cineastas), ela se reinventa atrás das câmeras a partir do romance de Elena Ferrante (A Amiga Genial, 2018-2020), por muitos considerado “infilmável”. Não tem pressa na caracterização de seus personagens, nem na elaboração dos cenários que os circundam. Nomes conhecidos, como Ed Harris e Dakota Johnson, são apresentados em meio à penumbra, ou vistos de longe. Aos poucos a luz e a proximidade vão revelando seus reais interesses – e importância para a trama. Mais do que seus gestos, está na impressão que provocam na protagonista o que precisa ser levado em consideração. Da mesma forma, o mergulho na água salgada, os bares e restaurantes que frequentam, o armarinho de miudezas ou a casa de veraneio também irão revelar diferentes níveis de relevância. O conforto pode vir tanto do mar quanto da chuva, assim como a inadequação pode se impor em meio a uma balada inesperada ou mesmo numa troca de olhares enviesados.

Pouco acontece, mas muito se anuncia em A Filha Perdida. O mérito está, como dito acima, na excelência e precisão de movimentos e expressões defendidas por Colman, mas ela não está sozinha. Leda é uma personagem por demais complexa para uma única atriz. Assim, há muito a ser creditado também ao desempenho mais exasperado, em parte por sua jovialidade, de Jessie Buckley, que oferece à jovem Leda o desnível e a inquietação que anos depois se transformariam numa falsa tranquilidade. É Buckley que precisa confrontar as filhas, a demanda constante das duas pequenas, as exigências de seres em formação que tanto dela dependem que terminam por esgotá-la. Todo o resto é consequência. Tal qual o isolamento, mas nunca solidão, com o qual convive nos dias de agora. Em mais de uma passagem enumera referências à mãe, o quanto as duas eram distintas no trato caseiro e como essa sombra por muito tempo a alcançou. Assim, aos mais atentos não restará dúvida de quem, de fato, acabou por se perder na longa jornada de uma existência. Da mesma forma, como pode ser simples reestabelecer uma nova ligação, desde que se esteja disposta a pagar o preço exigido.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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