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Crítica


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Sinopse

Visando combater predadores online, um vigilante desenvolve um revolucionário programa de computador.

Crítica

O que ainda torna o cinema uma atividade restritiva é a dependência de consideráveis recursos financeiros para ele acontecer (em vários sentidos) até chegar às telas. Equipes são geralmente dispendiosas, esforços de divulgação não menos onerosos e há outras tantas barreiras para termos uma amostra plural do que é feito mundo afora nas janelas de exibição. Mas, de vez em quando surgem produções que conseguem romper esse ciclo vicioso que prevê substanciais investimentos e expectativas de retornos monetários que os justifiquem. Selecionado para o 19º Fantaspoa, o Festival de Cinema Fantástico e Porto Alegre, A Garota Artificial se encaixa nesse exemplo de uma iniciativa empolgante que atinge feitos cinematográficos certamente desproporcionais ao seu baixo orçamento – limitação que seria empecilho para equipes menos criativas e/ou dependentes de muitos subterfúgios. Os dois primeiros capítulos (dos três, ao todo) do longa se concentram numa sala – primeiro, a de interrogatório e, segundo, a da força tarefa. Gareth (Franklin Ritch) é intimado a esclarecer a sua atividade em salas de bate-papo frequentadas por pedófilos. Deena (Sinda Nichols) e Amos (David Girard) fecham o cerco em torno do homem com dificuldades sociais, ao ponto de extraírem dele a revelação que muda a história: Gareth criou uma inteligência artificial que se passa por menina para pegar criminosos.

Desde o começo, em que sobressai a manutenção da tensão, fica clara a qualidade do roteiro assinado por Franklin Ritch (ele que dirige o filme). Os diálogos são recheados de segundas intenções, de não ditos e pequenos truques para estabelecer a dinâmica de poder e enfatizar as ponderações entre os personagens. Mas, não é apenas o texto envolvente que garante a captura da atenção do espectador, pois o realizador também imprime dinamismo por meio da mise-en-scène nessa trama ambientada em salas pequenas. A Garota Artificial cativa pelo privilégio às ideias em determento de qualquer intenção pirotécnica. Depois de estabelecer o cenário em que Gareth explica exatamente como funciona a sua criação – cuja excepcionalidade passa pela capacidade absurda de mimetizar uma criança de verdade –, Franklin trata de enxertar as conversas com discussões filosóficas que naturalmente permeiam a existência da robótica, a especulação sobre a natureza e o potencial das inteligências artificiais. Comparada à assistente virtual do começo, incapaz de encarar uma pergunta cuja resposta envolva sentimentos e escolas morais, Cherry (Tatum Matthews) é cada vez mais ciente da falta de limites imposta por seu crescimento exponencial entre os hardwares e softwares. As dúvidas existenciais dos personagens de carne e osso são sintomaticamente semelhantes às da IA que aprende a mentir.

Pegando o computador Hall 9000, de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), como uma espécie de paradigma, o cinema fez diversos retratos de máquinas ou criações sintéticas que se tornam perigosas à sobrevivência humana, sobretudo ao atingirem algum espectro de autonomia. Não é o que acontece em A Garota Artificial. Embora ocasionalmente o trio que utiliza Cherry para desmantelar intrincadas redes de pedofilia mundo afora demonstre receio diante do aprendizado da IA, essa sensação de temor não é tão preponderante ao andamento desse enredo mais propenso (e atento) às questões existenciais. Entre os três capítulos do longa-metragem há enormes passagens de tempo, nas quais fica ainda mais evidente a fragilidade do orgânico ser humano e a curiosa perenidade de uma existência virtual que não deteriora com o passar dos anos. Essas discussões atingem um ponto muito cativante quando Amos, depois se revelar extremamente contra a construção de um corpo biotecnológico para Cherry, questiona a inteligência artificial sobre consentimento. Com isso, Franklin Ritch lança uma série de teorias e postulados da área, vide o teste de Thurin, cuja finalidade é distinguir entre um humano e uma criação robótica/cibernética/virtual, e as famosas leis da robótica. E mesmo com temas tão “cabeçudos” em jogo, o filme não se perde em elucubrações inalcançáveis à maioria da plateia.

O engajamento gerado por A Garota Artificial vem dessa condição de englobar assuntos espinhosos, especulações que diariamente ganham novos elementos e pontos de interrogação, atrelando tudo isso à humanidade dos personagens de carne e osso e, por que não, à equivalente de Cherry, espécie de arauto de uma nova percepção. Ao menos dois investigadores possuem motivos pessoais para mergulhar a fundo nessa caçada a pedófilos e outros tipos de abusadores, não se preocupando com os sentimentos da criança virtual que cresce ao ponto de deixar de ser somente uma complexa ferramenta orientada por algoritmos. Em dado momento, Cherry joga na cara de seu “pai” o desrespeito por tê-la criado com base no trauma que deveria ter sido tratado de outra forma – mas, sem invalidar a nobreza da missão de ambos. Cherry negocia com as pessoas, defende pontos de vista, questiona moralmente decisões e motivações, cada vez mais borrando as fronteiras entre as percepções do que é realidade. O filme elabora bem suas questões implícitas, tais como: o que define uma vida? Quem deu autorização para alguns seres humanos fazerem da máquina (criada à sua imagem e semelhança) uma herdeira de sua miséria? No fim das contas, inteligentemente, Franklin Ritch propõe a tese de que a emancipação surge do cultivo dos interesses desvinculados dos propósitos pré-programados.

Filme visto durante o 19o Fantaspoa, Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre, em abril de 2023

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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