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Sinopse

Lise enfrenta a justiça diante da acusação de ter matado sua melhor amiga. Dois anos após os fatos, nenhum outro suspeito foi encontrado pelos investigadores. Os pais da garota fazem o possível para ajudá-la, mas uma dúvida: Lise seria realmente inocente?

Crítica

Lise Bataille (Mélissa Guers) parece culpada. Acusada do assassinato da melhor amiga, Flora, ela não demonstra qualquer tristeza diante das fotos da colega esfaqueada. Talvez a ré soe fria, calculista, manipuladora. Além disso, constitui a única pessoa suspeita da morte após dois anos de investigação. Nenhum outro nome teria motivação para o crime além da adolescente francesa, cujo vídeo íntimo foi publicado na Internet por Flora. Para completar o retrato, Lise carrega uma característica irritante aos jurados e advogados: a sexualidade livre. Ela faz sexo com vários meninos e meninas e não tem medo de falar a respeito. “Você diria que é uma garota fácil”?, pergunta maliciosamente a promotora. A garota não se incomoda com a provocação. Sim, ela pratica sexo oral em rapazes e moças, e por que não o faria? Durante o extenso julgamento que domina A Garota da Pulseira (2019), temos acesso à imagem de uma personagem pelos olhos de terceiros. A vida dela, as ações, os desejos e ambições serão contados por visões contrastantes. A ré, dotada de olhos fortes e postura inabalável, permanece sentada no banco, esperando o veredito. “Quando você for para a cadeia, posso ficar com o seu quarto”?, pergunta o irmão mais novo. “Faz o que você quiser. Não estou nem aí”, ela responde.

Dentro dos “filmes de tribunal”, o suspense costuma implicar na suspensão temporária dos fatos. Ocultam-se os verdadeiros criminosos, as armas do crime, as motivações, até algum investigador descobrir estes segredos e expor a verdade a todos. Fim do jogo: estão salvos a ordem e a moral. O diretor Stéphane Demoustier, do ousado Cléo & Paul (2018), no entanto, privilegia os julgamentos morais aos jurídicos. Este seria o equivalente do road movie aplicado ao suspense, no sentido em que a conclusão interessa menos do que o percurso – ainda que o desfecho ostente uma coragem impressionante. O cineasta se apropria de um dos subgêneros mais dependentes da finalidade (ou seja, todas as ações convergem para a descoberta final), retirando então o senso de propósito e inevitabilidade. Neste projeto adaptado de um roteiro argentino, o processo garante apenas o duelo entre as duas melhores versões de uma história. A jovem promotora (Anaïs Demoustier) e a experiente advogada de defesa (Annie Mercier) integram a disputa com os melhores argumentos possíveis, convertendo o espectador num jurado suplementar. Não por acaso, jamais vemos os membros do júri, posto que a câmera está voltada para nós. Os advogados, juízes, pais e testemunhas constituem diretores de suas próprias ficções. O suspense versa, em última instância, sobre a arte de contar histórias.

A orquestração do ponto de vista constitui outra peça fundamental deste jogo de xadrez. Não observamos o caso pelo ponto de vista de Lise, do pai dela, da mãe dela, nem da vítima, e muito menos dos advogados. Desprovido de flashbacks e de instantes reveladores, o filme não nos permite conhecer qualquer elemento que os membros da corte ignorem. Deste modo, não há heróis nem vilões, detetives incrivelmente sagazes nem adversários perversos. É provável que os lados opostos deste exercício do direito se encontrem no final do dia e tomem uma cerveja juntos no bar da esquina. Esta é apenas a profissão executada pelos advogados com competência. A Garota da Pulseira foge ao senso de espetáculo tão comum às cenas de tribunal. Esqueça os jurados coléricos, os juízes perdendo o controle durante os testemunhos (“Ordem no tribunal”!), os olhares de surpresa e revolta nos bancos em frente à ré. Reina uma atmosfera de melancolia, dia após dia, como um cansaço pesando sobre todos. Dois anos após o crime, os personagens se encontram exauridos psicologicamente, ao invés de movidos pelo ímpeto de justiça e vingança. A mãe (Chiara Mastroianni) falta aos primeiros dias que decidirão o futuro da filha. “Você entende, né”?, ela pergunta à garota, pedindo permissão para burlar o compromisso. Sem problema. A filha entende.

Tamanho cuidado com a narrativa se estende à composição das imagens. Neste tribunal vermelho, as pessoas vestem roupas azuis e amarelas, numa paleta de cores inesperadamente quente para o meio jurídico. A direção e a montagem sabem muito bem quando admirar Lise em silêncio, quando alternar para os rostos do pai (Roschdy Zem), da mãe da ré e da mãe de Flora. Os planos fixos correspondem ao decoro e à formalidade, mas também constituem impecáveis recortes do olhar: enquanto presenciamos o rosto de Lise sendo acusada de promiscuidade, não descobrimos como o pai se sente a respeito. Enquanto vemos as fotos do corpo esfaqueado, ignoramos a reação da mãe da vítima. Ao contrário dos habituais planos de conjunto, destinados a abarcar todos os personagens simultaneamente, produzindo a sensação de completude e de enquanto isso, Demoustier reproduz via estética o pressuposto de parcialidade. Jamais saberemos a história completa por trás do crime. O que pensa Diego (Léo Moreau) sobre a adolescente acusada de morte, com quem está saindo às escondidas? Por que a menção à faca faz com que os olhos de Lise brilhem mais forte do que antes? Afinal, os pais da adolescente acreditam em sua inocência? A mise en scène se converte num formidável exercício de ponto de vista. Ninguém jura “dizer a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade” porque, neste caso, isso não faria o menor sentido.

Os atores abraçam a tarefa de carregar um mundo de significados no rosto. Visto que as cenas ocorrem dois anos após o crime, ninguém está surpreso com os argumentos da promotoria, nem da defesa. As formalidades se passam como esperado, e Lise foi devidamente treinada pela advogada. Mélissa Gers, inexperiente no cinema até então, possui uma fala brusca, espécie de afronta aos juízes, contrariamente à esperada postura de garota entristecida. Seu corpo é firme, mas não exageradamente solene. Em cada um dos preciosos momentos de silêncio, somos levados a interpretar o gesto: seria indiferença? Conivência? Incapacidade de reagir devido ao trauma? Uma comprovação de inocência, ou de culpabilidade? Roschdy Zem, ator capaz de arroubos de heroísmo quando solicitado, se fecha na figura do pai dilacerado entre a defesa da filha e o incômodo das descrições sobre a vida sexual dela. Chiara Mastroianni, de olhos pesados e fala baixa, defende a autonomia feminina para sua geração, incluindo o direito não corresponder ao “instinto materno”. A brilhante cena final constitui a provocação perfeita quanto ao veredito: vemos tudo, e ao mesmo tempo não vemos nada, sobre a maneira como o processo se encerra. É divertido e provocador investir numa premissa comercial para então dificultá-la, torná-la mais humana e complexa do que os equivalentes televisivos e enlatados. Não há Annalise Keating, Gil Grissom, Adrian Monk, Alicia Florrick, Simon Baker, Benoit Blanc, Hercule Poirot, Sherlock Holmes. Os fatos ficam em segundo plano. Vence a narrativa mais plausível.

Filme visto online no Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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