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Crítica

Passados mais de quinze anos desde a primeira Palma de Ouro conquistada em Cannes com Rosetta (1999), as principais marcas do cinema de Jean-Pierre e Luc Dardenne já se tornaram facilmente reconhecíveis pelo público, que, então, sempre espera reencontrá-las a cada novo trabalho dos belgas. Em A Garota Desconhecida, todas essas características particulares podem ser notadas – os dramas pessoais emoldurados pelos comentários sociais, as protagonistas femininas fortes, o registro naturalista, sem trilha sonora, a câmera inquieta etc. – porém, desta vez, compondo uma narrativa que flerta mais diretamente com o cinema de gênero, no caso o suspense policial. Mesmo não chegando a realizar um neo-noir, os Dardenne imprimem ares detetivescos à premissa sobre a jovem médica Jenny (Adèle Haenel), que certa noite se recusa a atender a campainha do consultório após o horário de expediente.

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Na manhã seguinte, ela é informada pela polícia que uma garota não identificada foi encontrada morta próximo ao seu local de trabalho. Sentindo-se culpada, acreditando que poderia ter salvado a vítima, Jenny inicia sua busca pela verdade sobre o incidente. A partir da investigação, o longa assume uma estrutura episódica marcada pelos encontros da médica, tanto com possíveis fontes de informação sobre o caso quanto com os clientes de suas consultas em domicílio que rendem os momentos mais genuínos do longa - algo que de certa forma lembra a proposta adotada no ótimo Dois Dias, Uma Noite (2014), filme anterior dos cineastas. Haenel assume com firmeza o comando dessas duas frentes dramáticas com sua figura que transmite espontaneamente a seriedade necessária a uma médica, sem ocultar sua parcela de fragilidade.

Inicialmente seu comportamento denota certa frieza, especialmente no trato com Julien (Olivier Bonnaud), seu estagiário – quando o reprime por sua paralisia diante de um jovem sofrendo um ataque epilético, além do episódio da garota morta, quando o impede de abrir a porta. Porém, essa impressão é abrandada pela relação atenciosa que mantém com os pacientes, do senhor que sofre de diabetes ao garoto com câncer que compõe uma música em sua homenagem. A reação de choro contido ao ouvir a canção sintetiza bem a capacidade da atriz de encarnar a dualidade presente na personalidade fechada de Jenny. E mesmo quando a obstinação da personagem possa soar exagerada, graças ao trabalho de Haenel, é possível sentir sinceridade emanando de tal atitude.

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O retrato da protagonista, no entanto, difere dos outros trabalhos dos Dardenne por sua concepção menos aprofundada. Pouco é apresentado sobre a vida privada de Jenny, como o relacionamento com familiares e amigos, ou até mesmo detalhes de seu lar, já que logo ela passa morar na impessoalidade do consultório. A ideia parece ser a de conceder ao espectador tantas informações sobre Jenny quanto sobre a garota desconhecida, o que em teoria soa interessante, mas na prática limita a conexão com a protagonista. Na esfera do suspense policial, o desenvolvimento também apresenta irregularidades, muitas vezes sem a fluidez esperada: as ameaças que são descartadas rapidamente, a série de acasos que levam às pistas, a conivência dos policiais frente à intromissão da médica, que se mostra uma investigadora mais competente do que os próprios, utilizando seus conhecimentos medicinais para extrair a verdade de uma provável testemunha, o jovem Bryan (Louka Minnella), por exemplo.

Tanto os rumos da inquirição do caso quanto a dinâmica profissional de Jenny vêm carregados das questões sociais tão caras aos Dardenne. Estão lá o tema da situação dos imigrantes – a vítima, uma menor de idade africana, obrigada a se prostituir-, a corrupção, a crise econômica – o paciente que não pode pagar a conta de gás, o suspeito que não colabora por medo de que a polícia descubra sua oficina clandestina. Nesse panorama cruel, a culpa de Jenny reflete a culpa coletiva de parte das classes mais altas – não à toa, após a tragédia inicial, ela desiste da oportunidade de trabalhar em uma clínica particular luxuosa para seguir no modesto consultório - motivo que a leva a perseguir a resolução do caso. Pois descobrir o nome da garota, além de abrandar o próprio remorso, significa devolver a ela o mínimo de humanidade.

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Portanto, não deixa de ser irônico que a construção das figuras humanas em A Garota Desconhecida seja problemática. Todos sofrem com mudanças de conduta súbitas – o estagiário, Bryan e seu pai (interpretado pelo ator-fetiche dos cineastas, Jérémie Renier) – e possuem conflitos pessoais tratados superficialmente – os pais de Bryan que tentam reatar o casamento, o trauma de Julien com o pai abusivo. A dificuldade em aceitar as oscilações comportamentais dos personagens que movimentam a trama esvazia a força do mistério, gerando uma conclusão bem menos surpreendente do que o pretendido. Essa artificialidade das resoluções vai justamente contra o realismo que sempre povoou o universo dos Dardenne, eles que aqui esbarram até mesmo num sentimentalismo incomum em seu trabalho, vide a cena que antecede o plano final. Este, por sua vez, um momento que remete aos melhores da carreira dos belgas, mas que acaba encontrando poucos pares ao longo da projeção para fazer jus ao visível empenho de Adèle Haenel no papel principal.

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