Sinopse
Crítica
Sofia (Cumelen Sanz) é uma imigrante argentina que mora na Espanha. Casada com um colombiano corretor de imóveis, ela parece finalmente ter encontrado a forma ideal de subir na vida ao conseguir o tão sonhado emprego como assistente de Beatriz (Aitana Sánchez-Gijón), um dos principais nomes da moda na Europa. O cineasta Fran Torres não se demora muito nesse processo anterior à admissão no novo emprego e tampouco dá tanta atenção ao processo de adaptação da novata. O seu interesse repousa sobre a relação consolidada entre empregada e patroa, a tal “chefa” que consta no título original do longa-metragem lançado no Brasil diretamente pela Netflix. Os conflitos motivadores da história poderiam ser: as dificuldades de Sofia para se adaptar a um mundo glamoroso e exigente; poderiam também ter a ver com turbulências no relacionamento com a mandachuva que comanda com mão de ferro – como acontecia em O Diabo Veste Prada (2006); poderiam também vir de uma investigação interessante sobre essa lógica que reproduz a subserviência história dos latinos subjugados pela colonização aos europeus ávidos por enriquecer com as aptidões naturais das américas. O filme poderia ser tudo isso e ele até flerta com essas várias possibilidades, mas acaba se tornando um thriller previsível em que nem as pistas aparentemente indicativas são tão bem trabalhadas no mistério.
O roteiro assinado por Laura Sarmiento Pallarés aborda vários assuntos, além de possuir cruzamentos interessantes entre ações íntimas e coletivas. No entanto, as nuances e alternativas aos clichês do thriller com recorte social acabam sendo soterrados exatamente pela superficialidade. Para começo de conversa, há algo apresentado, amparado, mas não desenvolvido: o quanto a criminalização do aborto é responsável pelas tragédias do filme. Sim, porque ao descobrir que está grávida, Sofia pensa seriamente em interromper a gravidez que tende a atrapalhar a sua carreira. Antes de comentar com o marido, vai a uma igreja se confessar. O padre acolhe a sua angústia até saber que ela é alimentada pelo medo diante do “pecado mortal” prestes a ser cometido em prol da continuidade dos sonhos. E o que o pároco faz ao saber da intenção do aborto? Coloca mais um caminhão de culpa na argentina grávida, dizendo que aos olhos de deus não há nada mais hediondo do que o derramamento de sangue inocente. Portanto, o realizador observa rapidamente essa pressão exercida sobre a mulher pelo prisma da criminalização religiosa. Se não fosse isso, Sofia poderia recorrer ao procedimento e seus problemas acabariam. Mas, o dogma abre e escava o buraco ao qual ela é sugada. Pena que isso seja tratado pelo filme como algo periférico, presente, mas não devidamente situado e enfatizado.
Ainda recorrendo bastante às elipses – supressão temporal para acelerar os acontecimentos dentro de uma cronologia resumida –, Fran Torres transforma gradativamente A Gestora num filme bastante comportado, pois alimentado por um suspense em que todas as cartas são postas à mesa. Oras, se o principal componente do suspense é a dúvida, a pouca frequência dela configura um problema conceitual que determina o tom morno das coisas em cena. Sofia assina um acordo com a patroa para ceder-lhe o filho não abortado pela coação religiosa. O que parecia ser um contrato relativamente benéfico para ambas – com o efeito colateral da distância do marido desavisado, quando muito –, vai se tornando num pesadelo para a argentina confinada na casa afastada da europeia inescrupulosa. Enquanto vai demarcando didaticamente os passos da constituição desse cárcere privado (sumiço do celular, contato com a empregada que não fala espanhol, impossibilidade de evadir os muros da casa, etc.), o realizador praticamente se esquece de alimentar a responsabilidade do dogma religioso, a discrepância de classes sociais e nem chega a mencionar de novo o fato de termos duas mulheres disputando poder: uma sendo latino-americana e pobre; a outra sendo europeia e milionária. Desse modo, os subtextos minguam até praticamente desaparecerem sob o pretexto de uma tensão que anuncia a morte.
A Gestora é vítima desse desinteresse pelas profundezas e, por conseguinte, do mero e burocrático interesse pela superficialidade das coisas. Sofia cai em si quanto à verdadeira natureza da situação em que se encontra; Beatriz revela aos poucos a sua determinação sem limites para o plano ser colocado em prática exatamente como ele foi concebido; e o marido desavisado se torna apenas uma ameaça circunstancial. Fran Torres não explora a casa como um espaço paulatinamente claustrofóbico, apesar da opulência, com isso sabotando a capacidade expressiva do cenário. As conversas são mais esclarecedoras do que complicadoras e isso também se aplica aos passos dados por ambos os lados, que são telegrafados e explicados para não restarem muitas dúvidas. A tragédia anunciada é efetivada com a mesma displicência com a qual a atmosfera é desajeitadamente construída. Falta páthos a essas personagens que se movimentam de acordo com aquilo que delas se espera e nada mais. Essa ausência de ânimo impede a nossa aderência aos anseios e às controvérsias, sabotando constantemente uma história que não faz muita força para ir além de uma disputa superficial. Fran Torres tem dificuldade de deslocar as protagonistas no tabuleiro de seu xadrez repleto de movimentos manjados. Porém, a previsibilidade não é o maior problema do filme, mas a sua apatia e a convencionalidade.
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Não gostei. Faltou definir quem era a vítima e quem era a vilã, uma história diferente com duas vilas e nenhuma vítima, pois as duas estão se aproveitando uma da outra e querendo ganhar vantagem. Terminou sem graça. O noivo merecia ter sido informado sobre a gravidez, foi chato o fim do noivo tbm.