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Sinopse

Um rapaz é o único sobrevivente de um incidente numa gruta erma. A perícia aponta que ele assassinou os colegas, mas, além de negar, o sujeito se recusa a ajudar a polícia. Uma madre superiora entra nesse cenário.

Crítica

Talvez fosse evidente que, na falta de equipamentos apropriados de som e iluminação, não seria uma boa ideia filmar dentro de uma gruta. Entenda-se: não há problema algum em dispor de orçamento e recursos limitados, caso de tantas produções brasileiras, sobretudo no momento em que o governo milita contra o audiovisual nacional. No entanto, as restrições exigiriam dos criadores amplo domínio de linguagem para apresentarem soluções criativas aos impasses. Recentemente, o baixo orçamento foi explorado com astúcia por Adirley Queirós e Bruno Risas em ficções científicas (Branco Sai, Preto Fica, 2014, Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu, 2018, respectivamente) e por Luciano de Azevedo e Rodrigo Gasparini/Dante Vescio em ótimos filmes de horror (Cabrito, 2019, e O Diabo Mora Aqui, 2015). Juliana Antunes inclusive propôs viagens no espaço-tempo com o divertido Plano Controle (2018). Em outras palavras, ignorar as dificuldades e seguir adiante com um roteiro clássico-narrativo, desproporcionalmente ambicioso para o escopo da produção, constitui o prenúncio de um desastre.

Mesmo assim, a equipe de A Gruta (2020) mergulha no cenário-título munida de grandes ideias e pouco esmero, ao propor uma inesperada convergência entre o filme de possessão e o cinema-catástrofe. Uma das fragilidades desta abordagem se encontra no fato de nunca perceber a seriedade sepulcral com que representa conflitos e personagens absurdos. O resultado beira o humor involuntário diante da mulher prestes a dar à luz aventurando-se na trilha perigosa, da freira de cabelos tingidos de loiro, da mocinha desesperada chacoalhando um portão sem real convicção e de um herói de atuação afetadíssima (o próprio diretor, Arthur Vinciprova). Há um problema de verossimilhança tanto nas imagens quanto no roteiro: sugere-se uma possessão demoníaca sem que o conflito se desenvolva de fato, desespera-se pelo desmoronamento nunca visto em cena, lamenta-se a crise de um casal que jamais demonstra intimidade, teme-se pelo rangido da porta invisível. Imediatamente após o suposto colapso da gruta, os personagens brigam pelas últimas gotas de água em seus cantis. Ora, como passamos da constatação do caos à exaustão pela sobrevivência? O tempo e o espaço, elementos básicos da linguagem cinematográfica, são fragilmente orquestrados.

Como se estas deficiências não fossem o bastante, a montagem e finalização prejudicam a imersão no gênero. Algumas escolhas de edição tornam-se incompreensíveis: por que se escolheu a montagem-coito avançando e recuando no corpo da personagem parada admirando a gruta, ou fragmentando em meia dúzia de planos semelhantes os corpos da freira e da investigadora no corredor do hospital? Acreditou-se de fato na eficiência da edição de som com tamanho desnível entre as captações dentro da igreja e junto ao leito de Jesus (Vinciprova)? Os autores realmente apostavam na expressividade de tantas cenas escurecidas, envolvendo efeitos especiais de gosto duvidoso e um parto ocultado pelas sombras? Caso sublinhasse a impossibilidade de suas reviravoltas, o filme ofereceria uma divertida experiência trash. Pelo formato escolhido, aparenta acreditar nos diálogos artificiais (vide as falas diante do cenário natural pela primeira vez, ou a briga grosseira entre dois homens), na freira dotada de uma crise de fé imaginária, na investigadora que não investiga e no sábio que surge e desaparece sem razão. O roteiro é responsável por frases memoráveis como “Depois que a gente sair desse lugar, você vai esfregar a bunda na cara do Jesus!”.

Entretanto, reconhece-se a virtude de um projeto memorável. A incursão desajeitada pelos gêneros, apoiada em estética tão precária e ao mesmo tempo tão segura de si, alça A Gruta ao posto de clássico infame, lembrado por seus defeitos ao invés de suas qualidades. Como não rir diante de um homem que inexplicavelmente começa a vomitar sangue, enquanto grita: “Sangue!”, ou da mulher que descobre santos com cabeças arrancadas e diz: “Os santos estão com cabeças arrancadas!”. É difícil imaginar que o roteiro tenha passado por um longo processo de desenvolvimento, aperfeiçoado em várias versões, sendo encorajado por todos ao redor. Depois de inúmeros conflitos naturais e sobrenaturais no escuro infinito, uma personagem se exclama: “Tem alguma coisa ruim acontecendo nessa gruta!”. Formidável senso de percepção! Voluntariamente ou não, o terror se transforma numa comédia. Por este fator, Carolina Ferraz revela-se uma atriz qualificada demais para a produção amadora. A atriz demonstra impecável comprometimento em construir uma freira de olhos pesados, tristes e cansados, em decorrência do trauma no passado. Se há um bom elemento a destacar nesta obra, ele se encontra no profissionalismo da intérprete.

O conjunto de equívocos é completado pelo discurso racista. Desde a primeira cena, os personagens negros são associados aos trejeitos animalescos e ao exotismo em relação às culturas africanas. O início fetichiza o martírio e estupro da jovem branca virginal por uma horda de negros selvagens. A partir deste ponto, a única mulher negra condensa as funções de infanticida, adúltera, satanista, bestial e excessivamente sexualizada – ela lambe um revólver tirado sabe-se lá de onde, sendo acusada de “pensar em outros homens enquanto se masturba”, num combo tragicômico de racismo, misoginia, mansplaining e slut shaming. Já o herói branco, depois de cometer um crime, é absolvido pela trama por sua própria consciência em nome de um bem maior, tendo evitado uma ameaça grave (em conveniência com o justiçamento e feminicídio). Estranha-se que tal discurso chegue às principais plataformas de streaming, em pleno ano de 2020, sem real debate a respeito da objetificação. O cinema independente só tem a perder quando tenta copiar códigos conservadores de grandes produções (norte-americanas, em especial).

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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