Crítica
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Sinopse
Crítica
Neste filme russo, a Segunda Guerra Mundial é retratada por pequenos fragmentos. A judia Anna (Marta Kozlova), de seis anos de idade, acorda numa vala comum, cercada por pedaços de pernas e braços. A câmera fornece detalhes próximos destes corpos, impossibilitando a visão da vala inteira e a consequente determinação da quantidade de cadáveres. O olhar confuso, incapaz de distanciamento, representa o ponto de vista da protagonista suja e faminta, movida pelo instinto de sobrevivência. Ela compreende que precisa fugir dali e escapar dos nazistas, mas, por ironia do acaso, encontra esconderijo na lareira desativada de um edifício administrativo nazista. A chaminé possui um simbolismo evidente: sendo o local por onde passa o fogo e a fumaça, remete às câmaras de gás do Holocausto, enquanto a presença da menina entre os restos de lixo, buscando se alimentar de migalhas e água suja, a coloca em pé de igualdade com os ratos que percorrem o prédio. Anna não lamenta sua situação nem busca fazer amigos: ela apenas cria maneiras de resistir, inclusive devorando um biscoito em forma de suástica.
Como se pode imaginar, A Guerra de Anna (2018) representa um drama duro de assistir. Inicialmente, o diretor Aleksey Fedorchenko aposta na linguagem direta e realista, acompanhando a garota no esconderijo, dia após dia. A câmera testemunha a protagonista devorando livros, comendo fezes de animais e bebendo a água suja de vasos de plantas – e depois sofrendo com as dores de barriga. O procedimento pode ser debatido tanto pela impressão de veracidade quanto pela postura ética diante do sofrimento alheio. Por um lado, atinge um resultado verossímil, ressaltando o aspecto combativo de Anna sem manifestar piedade pela vida da menina. Por outro lado, faz questão de filmar de perto a dificuldade com uma insistência que beira o voyeurismo. O espectador é colocado na posição passiva e incômoda de testemunha: somos convidados a presenciar o calvário ininterrupto da menina, sem perspectiva de mudança, nem oferta de reflexão política. Fedorchenko não está interessado nas particularidades desta guerra: a garotinha poderia estar fugindo de qualquer adversário . Ao espectador, não se propõe interação com as imagens para além da empatia humana e da interação dos fatos.
O projeto se torna ainda mais frio devido às escolhas estéticas. Primeiro, Anna não pronuncia uma palavra sequer. O mutismo de protagonistas costuma resultar num gesto forçado das narrativas fictícias, porém se justifica neste caso – afinal, por estar isolada, sem conhecer ninguém e temendo ser descoberta, com quem a menina conversaria? Mesmo assim, ela não pede a Deus para fugir dali, não reflete em voz alta nem manifesta qualquer desejo. A menina se resume a um corpo em movimento, destituído de psicologismos. Segundo, a direção de fotografia opta por tons desbotados, tornando o local ainda mais inóspito. A neve não é completamente branca, mas cinza-azulada, e mesmo o gato amarelo se torna bege claro, quase sem cor. Visto que a personagem só pode perambular pelo prédio de madrugada, parte significativa das cenas se desenvolve sem luz externa, nem a possibilidade de acender lâmpadas. O diretor de fotografia Alisher Khamidkhodzhaev assume então as imagens escuríssimas, de pouco relevo, impedindo que o espectador admire ou perceba algo a mais do que a protagonista percebe por si própria. Nota-se a tentativa simbólica de transmitir ao espectador o martírio da protagonista.
O resultado é competente e compreensível enquanto conceito – para uma situação difícil, uma estética difícil e sem embelezamentos -, porém a narrativa se torna arrastada ao longo de curtos 74 minutos. Ao eliminar qualquer perspectiva de espetáculo ou de ação; ao retirar do drama as lágrimas, e da aventura, a perspectiva de fuga, o roteiro se contenta em observar as atividades repetidas de Anna. O terço final ameaça enveredar por um caráter lúdico através das cenas do banquete e do piano, filmadas em registro mais propenso ao sonho. No entanto, a realidade logo atenua estes recursos e recoloca o filme em sua posição de cúmplice silencioso. Talvez houvesse a possibilidade de introduzir metáforas que não mergulhassem o filme na emotividade, ou ainda acenar a alguma forma de escapatória futura (efetiva ou simbólica) para Anna. Ora, o niilista A Guerra de Anna se recusa a fornecer saídas para a menina e para o espectador, condenados ao claustrofóbico espaço da chaminé. Fedorchenko faz da imobilidade um posicionamento artístico válido, mas que não impede o resultado penoso.
Por fim, o projeto soa mais ousado pela proposta do que pela execução. Este deve ser conhecido como “o filme da garotinha que não fala uma palavra sequer”, ou o filme que ousa registrar a miséria de uma garota em fluxo contínuo de mais de setenta minutos, sem tramas paralelas, sem outros personagens nem bifurcações. O procedimento será considerado tanto humanista quanto sádico, dependendo do papel que se impute às artes diante das tragédias reais. Enquanto imersão no sofrimento histórico do povo judeu, utilizando um caso singular para representar metonimicamente o todo, o projeto cumpre o seu papel e demonstra coragem nas escolhas ousadas de luz, ritmo e enquadramento. Enquanto reflexão sobre as guerras, não fornece qualquer elemento além da constatação dos fatos, ou da percepção imediata e superficial sobre o sofrimento de pessoas perseguidas. De acordo com os pontos de vista, a conclusão será interpretada enquanto crítica à desumanização dos judeus, ou conformista em relação a esta mesma desumanização. Anna terminará o filme sem voz, sem história, sem descrição do passado nem perspectiva para o futuro. Para o bem ou para o mal, a história de brutalidades é contada da maneira mais bruta possível.
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