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Sinopse

Em A Herança, após receber a notícia da morte da mãe, Thomas retorna ao Brasil com o namorado, Beni. Chegando ao destino, descobre ser o único herdeiro de uma avó que nunca chegou a conhecer. Curioso para se reconectar com a história da família, eles visitam a casa e Thomas é recebido por duas tias que o tratam como um filho há muito perdido. À medida que ele fica cada vez mais encantado com o lugar, o companheiro começa a suspeitar que algo maligno se esconde sob a fachada de uma vida tranquila no campo. Exibido no Festival do Rio 2024.

Crítica

Uma criança, logo ao nascer, é afastada dos parentes e levada para longe do lugar onde veio ao mundo apenas para, décadas depois, se descobrir no caminho de volta. Ao chegar, após tantos anos afastada, é recebida de braços abertos, como o filho pródigo que à casa torna. Porém, aqueles que com entusiasmo comemoram seu retorno possuem motivos particulares para essa celebração, razões essas que serão reveladas ao público com parcimônia, como num quebra-cabeça do qual cada peça pode apontar para uma ou outra direção. Há um motivo para tamanha parcimônia: afinal, o perigo os circunda, principalmente àquele que pensa estar, enfim, em segurança. Essa rápida descrição poderia servir ao longa português A Semente do Mal (2023), lançado há não mais do que um ano. Mas também se aplica em linhas gerais ao brasileiro A Herança. Infelizmente, os dois títulos compartilham entre si semelhanças que vão além dessa premissa genérica.

João Cândido Zacharias provocou um certo frisson no circuito dos festivais com o curta Os Últimos Românticos (2019), tendo sido selecionado para eventos de prestígio, como o Kinoforum São Paulo e o IndieLisboa, em Portugal. Foi o que lhe credenciou para um passo seguinte mais audacioso. O resultado é esse A Herança, sua estreia em longa-metragem. O conjunto está longe de ser desprovido de méritos, por mais que as similaridades apontadas no primeiro parágrafo incomodem. Afinal, se por um lado a comparação se dá com um thriller de pouca repercussão popular – não serão muitos os que estabelecerão de imediato as ligações de um com o outro, muito pela ausência de referência – não se pode ignorar que tal paridade se dá com uma produção de lançamento próximo. Talvez tenham sido produzidas de forma simultânea, uma sem o conhecimento da outra. Uma relativização que atenua, mas não evita o desconforto.

Thomas é o protagonista dessa jornada de redescoberta e transformação. É ele quem recebe a notícia da morte da mãe e a consequente necessidade de voltar ao Brasil para receber o que é seu por direito. Nesse ponto, um diferencial pertinente: o rapaz mora no exterior, mais precisamente em Berlim, e não sozinho, mas com o namorado, o alemão Beni. Os dois possuem uma boa vida juntos, e ao chegarem ao país que tão pouco conhecem, esse retorno não se dá sem ruído. Quando se encontram na casa que agora é sua, Thomas apresenta o namorado às tias como “um amigo”, sem se aprofundar nos laços que os unem. As duas, por mais que tenham perfil de fofoqueiras e intrometidas, não fazem questão de mais detalhes. Elas, afinal, possuem uma agenda própria. E sabem que, não importa quem mais se aproxime, o que precisavam foi feito: o sobrinho está de volta ao lar.

Zacharias assume um risco alto ao colocar seu personagem principal nas mãos de um novato. Diego Montez pode ter participado de telenovelas como Cúmplices de um Resgate (2015-2016) ou aparecido como coadjuvante em sucessos adolescentes como Perdida (2023), mas lhe falta experiência para assumir uma figura tão complexa quanto Thomas. Ele é o rapaz carente, seguro de sua identidade sexual, ao mesmo tempo em que sente falta de um espaço no mundo para chamar de seu. O reencontro com suas origens lhe supre parte dessa necessidade, mas o vazio segue lhe perseguindo. Para tanto, é preciso entender essa personalidade sofrida, ainda que em meio a um momento de regozijo. Yohan Levy (7 Minutos, 2020) se sai melhor também por ter em mãos um tipo linear, que lhe exige menos, gerando uma entrega mais segura. O companheiro que primeiro identifica os sinais de perigo, ao mesmo tempo em que é abandonado num jogo de espelhos que pode refletir suas próprias inseguranças. É ele, enfim, a ponte com o espectador. Essa dinâmica fortalece a narrativa.

Muito de A Herança se perderia, no entanto, não fosse a excelência demonstrada pelas veteranas Cristina Pereira e Analú Prestes, ambas no domínio de suas presenças, tão acolhedoras quanto temidas. São elas que desde o início permitem que a sensação de que algo naquele cenário não está certo, ao mesmo tempo em que disfarçam qualquer presunção precipitada. E se o desfecho por vezes soa por demais precipitado – e até mesmo apressado, visto os efeitos visuais que se validam por meio de uma condescendência da audiência, assim como passagens que beiram o constrangimento alheio – eis um todo que busca se manter firme mais pelo que propõe, e menos pelo que alcança. Tendo isso em vista, é de se acreditar na validade dos esforços reunidos. Nem sempre satisfeitos, mas ao menos em busca de algo que saia do lugar-comum.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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