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Sinopse

A História de Souleymane: Recentemente chegado em Paris, França, Souleymane tenta sobreviver entregando refeições de bicicleta. Ao mesmo tempo, ele prepara uma entrevista determinante para a obtenção do asilo e de documentos para poder trabalhar. Mas ele encontra muitas pedras em seu caminho. Premiado no Festival de Cannes 2024.

Festival Varilux

Crítica

Se fosse um personagem bíblico, Souleymane (Abou Sangare) seria daquele tipo a quem o deus cristão coloca à prova para se certificar de que ele é digno da recompensa almejada. Caso fosse integrante da mitologia grega, seria obrigado a trabalhos quase impossíveis para satisfazer o narcisismo das divindades olimpianas que gozam das limitações mundanas. Como se trata de um imigrante africano da Guiné tentando autorização para morar e trabalhar na França, ele é o representante de uma severa crise humanitária. A ascendência mitológica que parece meio despropositada num drama tão realista quanto A História de Souleymane está ali como uma sombra simbólica dos feitos do homem comum que enfrenta diversos desafios ao longo de seu dia. De toda forma, ele também precisa satisfazer a fome de uma entidade opressora que parece completamente alheia ao seu sofrimento individual: o capitalismo. Em todas as circunstâncias, é a pressão exercida pela lógica monetária que transforma as tentativas de sobrevivência dele em verdadeiros calvários. Entregador de aplicativo, Souleymane somente não personifica o retrato da precarização tão abordada nos últimos anos, pois está abaixo disso. Como não tem a permanência autorizada na Europa, seu trabalho é clandestino. Ele aluga a conta de entregador de outro imigrante, antes estabelecido, que não tem qualquer pudor ao explorá-lo diariamente.

A História de Souleymane parece simplesmente um homem africano tentando permanecer na França, porém é bem mais do que isso. De uns 15 anos para cá, são abundantes essas tramas que mostram refugiados e/ou imigrantes sofrendo com a indiferença e a violência em países aos quais foram em busca de uma vida melhor. Então, não chega a ser necessariamente novidade a perambulação de Souleymane por uma cidade que o invisibiliza. A perspectiva mais interessante está na estrutura de exploração que as movimentações do protagonista acabam expondo, especialmente no que diz respeito ao mundo que ele pode acessar do lugar provisório e às vezes clandestino. Como não tem autorização para trabalhar na França, Souleymane precisa se sujeitar aos abusos do rapaz que fica com metade do que ele ganha pedalando dia e noite. Desesperado para mudar essa condição, ele se sujeita ao homem que vende documentos frios e cria narrativas supostamente facilitadores do seu pedido de asilo. Some-se tudo isso à falta de segurança habitacional e à ausência de afeto, e temos um protagonista sem direito até mesmo à indignação. Na cena em que é questionado pelos policiais, Souleymane sabe que não pode demonstrar qualquer irritação para evitar coisa pior. O mesmo acontece quando ele se depara com clientes grosseiros. O Estado e o dinheiro são essas divindades a quem ele deve obediência.

O cineasta Boris Lojkine acompanha bastante Souleymane de costas transitando pela cidade apressadamente. Nessa jornada, há pequenos suspenses que tensionam as ações. Por exemplo, quando o protagonista perde um tempo precioso esperando a produção do pedido num horário propício para ganhos significativos, ficam implícitas a perguntas: será que ele conseguirá cumprir o prazo? O cliente não ficará bravo com ele? O atraso não significará a perda do horário do ônibus que o leva ao abrigo e, por conseguinte, o obrigará a uma noite sob o relento? A História de Souleymane é atravessado por diversas perguntas subentendidas a respeito da insegurança do protagonista. O que vai acontecer se ele não conseguir quitar os pagamentos com o homem que o está ajudando a criar um discurso convincente para se estabelecer na França? Souleymane terá condições de sustentar uma mentira tão decorada e com isso garantir a sonhada permanência? Essas e outras tantas indagações somente têm valor dramático porque nos importamos com Souleymane, pois somos levados sensivelmente a um processo de empatia por esse Hércules contemporâneo realizando trabalhos de extrema complexidade para alguém precarizado a fim de saciar a fome do capitalismo que fatura abundantemente com a miserabilidade. Claro que há responsabilidades individuais nesse panorama tétrico, mas os principais vilões são estruturais.

Se nos tornamos absolutamente simpáticos à epopeia de Souleymane, em parte isso se deve ao desempenho do ator Abou Sangare – que, apesar de ter a sua atuação premiada, viu-se numa situação semelhante à do seu personagem, ou seja, na iminência da deportação. Ele empresta uma verdade crua aos anseios do protagonista impedido de descansar. Souleymane é condenado a permanecer em movimento, sendo apressado até no instante relaxante sob o chuveiro. É alguém em ininterrupto estresse, obrigado a mentir para ter aumentadas as suas chances de permanência na França. Aliás, ao mostrar a necessidade de criar uma versão política que defina Souleymane como asilado, Boris Lojkine faz uma crítica aos critérios franceses para conceder vistos. Fica subentendido que nessa condição o africano terá chances de êxito, mais do que se disser a verdade (que sabemos apenas no fim). E isso diz muito sobre como as nações europeias lidam com as demandas pessoais de quem nelas busca um recomeço: as considerando menos urgentes e, por isso mesmo, não tão dignas de atenção. Voltando ao suspense, o filme se encerra com uma cena longa e recheada de tensão na qual Souleymane precisa convencer alguém de que é digno de ficar. Depois de satisfazer a fome do deus-dinheiro, o sujeito que reforça a sua raiz mitológica sendo o herói abnegado renunciante ao amor precisa prestar tributo ao Estado.

Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês em novembro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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