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Sinopse

O jangadeiro Manuel Jacaré foi tragado pelo mar quando Orson Welles filmava o inacabado É Tudo Verdade (It's All True), em 1942. O fato evoca memórias da ditadura do Estado Novo, da Segunda Guerra, da luta de pescadores cearenses por direitos trabalhistas e por moradia no seu espaço tradicional — alvo de especulação imobiliária.

Crítica

A odisseia dos jangadeiros. O filme-encomenda inacabado. Em A Jangada de Welles, essas duas circunstâncias têm seus contornos lendários engrandecidos ao serem cruzados. A primeira, de cunho político, a aventura com ares mitológicos de desvalidos que percorrem os mares bravios para desenhar a metáfora da luta cotidiana contra as agitações do capitalismo que os marginaliza. A segunda, de certa forma também caracterizada por mandos e desmandos de estruturas autoritárias. Neste caso, as engrenagens hollywoodianas a serviço da política da boa vizinhança que visava garantir a adesão do Brasil ao bloco de países denominado Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Os diretores Petrus Cariry e Firmino Holanda rimam abertamente documental e experimental, não demonstrando tantos pudores ao forçar a convivência de depoimentos bastante tradicionais com audazes justaposições de signos e texturas. A mobilização aqui nasce do desassossego. Na metade inicial do filme, parece que o objeto principal será meramente factual, vide a forma como se remonta ao que fez o estadunidense Orson Welles se interessar pela jornada dos trabalhadores.

Mas, à medida que a colcha de retalhos é costurada, com fragmentos interligando-se a outros de suportes, origens e naturezas distintas, sobressai uma imaterialidade residual. O resultado é a evocação histórica não condicionada pela organização dos acontecimentos seguindo metodologias cartesianas. Ao se referir a Hitler, a dupla de cineastas não se limita a mostrar o Führer esbravejando em praça pública, mas recorre aos monstros do Expressionismo Alemão, tais como o Cesare de O Gabinete do Dr. Caligari (1920) ou mesmo o vampiro de Nosferatu (1922), como se pedissem licença ao cinema para invocar determinadas coisas. Aliás, as próprias imagens do líder do Terceiro Reich são retiradas de filmes feitos com a clara intenção de engrandecer a sua figura e dotá-la de imponência. Existe uma forte retórica nesse rearranjado de imagens dentro de contextos distintos, intercaladas com as aventuras latino-americanas do gênio encarregado de nos afastar do nazismo ao exercer seu charme e influência para ajudar a convencer a ditadura de Getúlio Vargas a rechaçar o fascismo.

Pode-se, então, dizer que A Jangada de Welles gradativamente utiliza o cinema para refletir a respeito de uma série de episódios históricos interconectados profundamente, num movimento distante da superfície. Com eles, cria uma liga ocasionalmente frouxa, especialmente em virtude do abandono deliberado de certos registros em detrimento de uma sensação crescente de impossibilidade. São oferecidos retratos dos quais não é possível comprovar a veracidade, já que todos são ressignificados a partir dos suportes que os eternizaram, seja o cinematográfico ou o memorialístico. Este, trazido novamente à tona nos depoimentos ofertados como estilhaço dessa narrativa articulada vagarosamente. Uma pena que Petrus Cariry e Firmino Holanda não invistam nesse questionamento aludido nas menções sutis a Verdades e Mentiras (1973), um dos injustamente menos celebrados filmes de Orson Welles, cujo mote é justamente a possível integridade da verdade. A se lamentar, também, que em determinados instantes o conjunto se entregue a uma agitação pouco produtiva, que acaba não acrescentando muito à singular atmosfera de arqueologia com requintes de antropofagia.

Porém, se há uma qualidade evidente em A Jangada de Welles é a capacidade de combinar habilmente os contornos legendários dos pescadores e os do filme inacabado. Orson Welles se rebelou contra a ordem de registrar a "beleza" do Carnaval, sendo reprimido pelos chefões Hollywoodianos racistas que não gostaram das imagens de pessoas negras se refestelando na folia de Momo. Também longe dos ideais propagandísticos combinados entre as nações prestes a estreitar laços, ele se encantou pela saga dos pescadores que desejavam cobrar de Getúlio Vargas a possibilidade de serem tidos como dignos de direitos. Helena Ignez conjura a memória de Rogério Sganzerla, diretor que dizia aos quatro ventos ser influenciado pelo norte-americano que reaparece aqui em imagens de arquivo, como seu decalque de Nem Tudo é Verdade (1996) e na condição de fantasmagoria vivida por Petrus Cariry, então cineasta, ator e narrador. O ápice dessa operação poética em que o cinema desempenha função fundamental é mostrar os efeitos do passado desenvolvimentista no presente despersonalizado. É algo abrupto, mas impacta ao reapresentar o preto e branco, porém com novas razões.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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