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Sinopse

Depois de arrombar com facilidade um SUV estacionado na rua, Djalma se percebe preso numa armadilha. Ele não consegue sair do automóvel blindado e tampouco ser ouvido pelos transeuntes que poderiam socorrê-lo. O jovem assaltante apenas interage remotamente com seu algoz que o tortura para conseguir vingança.

Crítica

À primeira vista pode parecer que o protagonista de A Jaula é Djalma (Chay Suede), o jovem assaltante que entra num carro alheio para roubar e acaba preso num jogo sádico promovido por um desconhecido. Na maior parte do longa-metragem, esse personagem fica solitário no SUV transformado numa prisão sobre quatro rodas, interagindo remotamente apenas com seu algoz. Mas, vamos prestar atenção numa coisa: o que, de fato, sabemos a respeito de Djalma? Que ele tem um filho, uma esposa preocupada e que mora na periferia (e gosta de funk). Nada mais do que isso. Em nenhum momento o cineasta João Wainer utiliza essa figura para, ao menos, tentar entender a perspectiva do desvalido dentro de uma situação social desigual. Ponderando a partir disso, podemos então analisar que ele é transformado numa presença deflagradora das intenções do verdadeiro protagonista, o médico vivido por Alexandre Nero. Esse homem que se apresenta como doutor respeitado é o polo que expõe a fisionomia de uma parcela da população: o chamado “cidadão de bem”, apelido de quem utiliza Deus, família, tradição, moral e bons costumes como credenciais para justificar atos e pensamentos abomináveis. A dinâmica entre os dois homens é simples, mas nos permite pensar num cenário repleto de complexidades. De um lado, o corpo que definha aos poucos. Do outro, a voz que destila absurdos típicos de uma classe dominante agressiva e sem um pingo de consciência social. Eles são antagônicos.

O fato do médico não ter um corpo durante a maior parte de A Jaula assinala as intenções do roteiro. Esse homem que insiste em ser chamado de doutor é menos uma individualidade do que uma ideia que circula abundantemente nos tempos nefastos em que vivemos. Enquanto o jovem periférico é submetido à toda sorte de torturas físicas e psicológicas, encarcerado num símbolo da esmagadora noção de propriedade (o carro), o sujeito que detém o poder (exercido remotamente) aproveita a subjugação do outro para revelar a sua visão de mundo. Djalma está ali, morrendo lentamente de inanição, enquanto o seu carrasco abastado fica falando sobre como é preciso assumir as rédeas da própria segurança já que o Estado é falho nesse sentido. O longa-metragem poderia intensificar e diversificar esse diagnóstico que envolve política, ética e moral? Sem dúvida, até porque no quesito reflexão ele acaba deixando a desejar, sobretudo pela preferência dada aos arquétipos, às caricaturas e às sentenças. Não há tantas nuances em jogo e Djalma sequer é colocado na equação como alguém capaz de contrapor algo. Ele é o subproduto da coletividade agressivamente estratificada que é transformado em vítima das artimanhas do membro proeminente da mesma comunidade que vive amedrontada. A insegurança é um dos maiores meios de controle comunitário de que se tem notícia. E esse estado das coisas é simbolizado pela apresentadora do programa do tipo “mundo cão” que incita ódios ao vivo.

João Wainer se sai relativamente bem diante da missão de evitar a mesmice em A Jaula. Isso, principalmente levando em consideração que o grosso da história se dá num cenário bastante restrito. Ele explora com habilidade o interior do automóvel, muito embora perca oportunidades para tornar a relação de Djalma com o meio ambiente ainda mais opressora. Outro ponto positivo é a suspensão da noção de tempo. Não sabemos ao certo quantos dias, horas ou minutos se passaram de uma cena a outra, um interessante procedimento que visa ampliar a desorientação e, por consequência, a inquietação. Chay Suede dá conta do recado como esse corpo exaurido aos poucos e angustiado pelo isolamento, amedrontado por gradativamente entender que está à mercê de alguém cuja noção de justiça é deturpada e torta. Em nenhum momento A Jaula exime Djalma da culpa de ter entrado sem autorização no automóvel alheio, mas, no fim das contas, o observa como uma vítima de algo muito maior do que ele ou do seu algoz. Uma pena que o realizador não explore algumas boas chances para tornar essa experiência ainda mais densa e exasperante. Há certas repetições e desperdícios de sacadas visuais interessantes, vide a cena do sexo dos desconhecidos apoiados no automóvel, cujo ideal de liberdade poderia ser melhor oposto ao aprisionamento de Djalma. Aliás, essas pontuais interações com o mundo exterior são trabalhadas burocraticamente. Fosse diferente, a situação ganharia cores como microcosmo.

Outro ponto frágil: é preciso suspender a descrença para não empacar em alguns pontos de A Jaula. Tudo bem que o carro é blindado, à prova de som e o escambau, mas em nenhum momento Djalma pensa em fazer força e balançar a estrutura para sugerir aos passantes que há algo errado? Outra: por que em nenhum instante ele sequer tenta fazer uma ligação direta e, ao menos, se deslocar com o veículo? Somadas a isso, as simplificações aumentam quando o médico deixa de ser uma voz remota e revela ter um corpo. Dali para adiante todas as pautas e seus desdobramentos acrescentam pouco num embate que poderia ser mais bem desenvolvido dentro das esferas política, social e até filosófica. Afinal de contas, com que direito esse “cidadão de bem” resolve brincar com a vida alheia? O médico é um evidente representante do que chamamos atualmente de bolsonarismo, referência escrachada ao ideário propagando por Jair Bolsonaro e seus correligionários – tanto que Alexandre Nero termina certas sentenças com “talkei”, esse quase bordão do atual presidente do Brasil. O homem branco de classe média alta age desumanamente para manter seus privilégios, evocando o direito à propriedade como se ele fosse superior ao direito à vida. O que falta a esse remake do argentino 4X4 (2019) é explorar melhor as nuances e trabalhar a abrangência desses sintomas da nossa contemporaneidade doente.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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