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Sinopse

Após sobreviverem a um acidente marítimo em pleno Oceano Pacífico, duas crianças conseguem sobreviver e chegar a uma ilha. Por meio da convivência, criam laços fortes uma com a outra. Conforme atingem a adolescência, descobrem o amor e o desejo sexual.

Crítica

A Lagoa Azul (1980) pode ser lido como uma homenagem à pureza. A história sobre duas crianças que sobrevivem a um acidente marítimo e crescem juntas, numa ilha deserta, possui todos os elementos necessários para se defender o valor da inocência e a virtude da ignorância. Os atores principais, que passam 80% das cenas sozinhos, são belos como duas estátuas, e o local onde crescem representa um paraíso farto em frutas e peixes. Ambos são comportados, castos, gentis. Emmeline (Brooke Shields) e Richard (Christopher Atkins) desconhecem as passagens da vida adulta (a menstruação, o sexo, a gravidez), porém conhecem a Bíblia, louvam a Deus e sabem cantar o Pai Nosso. Na ilha, vivem um idílio inicialmente fraterno, e em seguida amoroso, gerando um bebê igualmente perfeito, sorridente, que quase nunca chora. Os poucos perigos são de ordem natural (o veneno de algum animal, que se dissipa rapidamente) ou decorrentes da chegada de estranhos que ameaçam aquele modo de vida. Este cenário constitui uma espécie de Jardim do Éden, onde Adão e Eva convivem em harmonia antes de morderem o fruto proibido – neste caso, a ameaça provém literalmente de uma fruta.

Em outras palavras, a dupla de protagonistas é vista como moralmente superior ao público das salas de cinema por ser incivilizada, em todos os sentidos do termo. O livro de Henry de Vere Stacpoole dá origem a uma demonstração fabular, e por isso mesmo utópica, do mito do bom selvagem: o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe. Se não tivéssemos contato com a gula, a cobiça, a ganância, a vaidade e os demais pecados, seríamos como os amantes perfeitos da ilha magnífica. O problema deste ponto de vista reside na oposição da santidade dos personagens à selvageria dos indivíduos “de fora”. Os homens do tambor, figuras bestiais que habitam o outro lado ilha, onde veneram estátuas de pedra nada cristãs, são negros dotados de olhares ameaçadores. Os velhos bêbados que provocam o acidente do barco “têm os mesmos olhos do homem do tambor”, descreve Richard. Em outra palavra, o contato com o álcool (no caso de Paddy, interpretado por Leo McKern), com o paganismo, com o dinheiro e com as sociedades do mundo inteiro provocaria uma corrupção inerente, visível ao olhar. Quando surge a possibilidade do resgate, os jovens amantes ignoram a chegada do navio e se escondem floresta adentro, porque já construíram um senso de superioridade sobre seu modo de vida em relação aos demais. A curiosidade típica da adolescência também se acalmou.

Os dois adolescentes precisam ser tão protegidos do mundo externo que praticam uma versão do incesto: eles são primos, resgatando através de sua união a tendência medieval de procriar em família, para não se contaminarem com comunidades alheias. Ironicamente, esta visão casta sobre o amor cristão se constrói em torno do incesto, da nudez frontal de crianças e de adolescentes, da gravidez na adolescência e do prazer sexual oriundo originalmente da Eva pecadora – é Emmeline quem deseja os músculos de Richard pela primeira vez. Se fosse feita hoje, esta fábula edulcorada do amor infantil sofreria graves críticas por racismo, exploração da nudez, fetichismo do corpo dos atores etc. Pelo modo como o diretor Randal Kleiser filma esta história, o natural se choca o tempo inteiro com o artificial: por um lado, a inocência de duas crianças numa ilha selvagem representa o que há de mais despojado e não intervencionista, por outro lado, a perfeição dos corpos, dos cenários, dos figurinos e dos conflitos gera uma aparência turística ou mesmo publicitária.

Críticos da época reclamaram da falta de realismo, mas como exigir verossimilhança dentro de uma obra claramente dedicada à fantasia? Desde a sequência inicial, com o acidente e a chegada à ilha, a estética adota o tom de aventura. O cineasta evita tanto as ferramentas da ação (o reforço da tensão, o espetáculo da destruição do barco) quanto aquelas do drama (os dois sofrem pouco pela perda dos pais, adaptando-se rapidamente). Privilegia-se o tom da jornada mágica, próxima do sonho. Em outras palavras, busca-se o avesso da realidade: Kleiser não representa o amor comum, e sim o amor como ele poderia ser. A romantização ultrapassa o relacionamento entre Emmeline e Richard para chegar à própria visão de mundo. A trilha sonora confere um teor de jornada deliciosa à orfandade e ao abandono das crianças na natureza, enquanto a descoberta de peixes e cachoeiras se assemelha à chegada num país das maravilhas. Talvez este seja o aspecto mais controverso do projeto: a decisão de narrar uma história muito próxima do terror – crianças abandonadas, sem um adulto por perto, podendo morrer de fome ou doença – pelo filtro da doçura. A Lagoa Azul representa um filme fácil: os protagonistas se adaptam bem, convivem sem dificuldade com o medo, a solidão, o veneno de um peixe, uma gravidez inesperada. A narrativa traz a sequência de gestação e parto mais agradável da história do cinema.

Ao final, este clássico da Sessão da Tarde – considerado pelos programadores, portanto, como adequado à juventude brasileira – transmite de maneira sutil os valores cristãos sem a aparência de proselitismo, enquanto defende uma forma cristalizada da beleza, da bondade e do amor. Brooke Shields e Christopher Atkins não parecem escolhidos por sua habilidade dramática: ela sublinha em excesso a candura da moça doméstica; ele exagera na gesticulação e nos olhos arregalados ao construir a figura máscula do homem caçador-provedor. Mas quem se importa, certo? O projeto vende a associação espelhada entre beleza e o caráter: o corpo perfeito representa a moral perfeita, onde o desejo sexual ocorre de maneira controlada e limpa. Talvez seja um exagero sugerir a defesa do eugenismo por parte desta fábula, embora ela permita extrapolações a partir de seu sentido imediato. Seria mais interessante ler o projeto enquanto sintoma do cinema que se vende às famílias e às crianças sob o signo de pureza. O caráter questionável desta pequena aventura íntima, de narrativa enxuta e linear, se encontra em sua recepção e apropriação, ou seja, a partir do momento em que não é lida como modelo a questionar, mas como modelo a seguir.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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