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Sinopse

Um bairro pobre de Chicago abriga a lenda de um espírito assassino. Depois de um processo de gentrificação, os novos moradores terão de lidar com o retorno dessa ameaça sobrenatural.

Crítica

A princípio, Candyman constitui uma lenda urbana mais apropriada às crianças do que aos adultos. Sua aparição depende da vontade ou coragem da vítima: o assassino com um gancho na mão ataca somente aqueles que pronunciam seu nome cinco vezes em frente ao espelho. Caso seja chamado quatro vezes, ou diante de uma superfície opaca, continua descansando. O inimigo ataca aqueles que desejam ser atacados, respeitando um rígido código de conduta que o distancia dos imprevisíveis assassinos em série, dos fantasmas ocupando casarões abandonados e dos demônios possuindo garotinhas virginais. Pela quantidade de regras associadas à sua aparição (o gancho no lugar de uma das mãos, o corpo parcialmente queimado, os doces, as abelhas ao redor, a semi-invisibilidade), lembra os pesadelos punitivistas das fábulas infantis originais. Candyman ensina as crianças a não confiarem em estranhos nem aceitarem presentes (como na fábula de Chapeuzinho Vermelho), resistirem às tentações mundanas (a exemplo de João e Maria), e sobretudo, a respeitarem o desconhecido, admitindo sua impotência face a poderes maiores (caso da Pequena Sereia e dos ensinamentos bíblicos em geral), estabelecendo limites morais, naturais e transcendentais a jamais cruzar. A punição, no caso, torna-se culpa da vítima.

Ao adaptar o complexo personagem à Chicago gentrificada do século XXI, os roteiristas Nia DaCosta, Jordan Peele e Win Rosenfeld levam o debate sobre a convivência entre diferenças ao racismo estrutural norte-americano. Em seus longas-metragens como cineasta, Peele já explorava o horror inerente às crônicas sociais: em Corra! (2017) e Nós (2019), o medo decorre da sociedade realista. O obstáculo se encontrava na alteridade, fossem os jovens negros contra os brancos pseudo-progressistas (no primeiro filme), ou as famílias negras contra os traumas históricos (no segundo filme). Por sua vez, a cineasta Nia DaCosta enxerga na lenda urbana uma maldição: o sujeito do gancho implacável seria vítima de uma sociedade policialesca, onde os negros são considerados culpados até que se prove o contrário. O legado do Candyman original se expande a pessoas negras desvalorizadas, objetificadas e incompreendidas. Curiosamente, na figura da classe social repudiada, o roteiro mergulha no terreno da intelectualidade burguesa, repleta de críticos de arte, mecenas, galeristas, pintores perturbados e assim por diante. O cenário dos bairros populares, espaço fundamental à trama, se confronta à artificialidade do mundo de aparências dos novos ricos. Não por acaso, o vilão surge na forma de sombras e projeções. Um dos primeiros ataques visa uma tela onde se projeta uma obra de videoarte: Candyman busca superar o real por sua representação. Questiona-se a imagem enquanto construção artística e construção de uma identidade social.

Um dos melhores aspectos em A Lenda de Candyman (2021) reside na direção de fotografia de John Guleserian, em parceria com as escolhas da diretora. A proposta de um assassino invisível a olho nu, porém percebido em espelhos (o inverso dos vampiros) poderia oferecer dificuldades notáveis aos autores. Como retratar o ataque do que não se vê, sem recorrer aos tradicionais vultos atrás das vítimas? Ora, o longa-metragem fornece um amplo banquete de sugestões. Uma sequência importante dentro do apartamento tem a morte revelada à distância, conforme a câmera se afasta do edifício e enquadra as demais residências, seguindo suas rotinas sem conhecimento do crime ao lado. No banheiro da escola, a coreografia de cinco ataques num espaço limitado soa dificílima, porém DaCosta, John Guleserian e a montadora Catrin Hedström encontram soluções à altura do desafio, através de fragmentos de imagens e respingos de sangue. Para os fãs do terror clássico, há carnificina o suficiente para impressionar. Àqueles interessados no horror moderno (e preocupados com o possível prazer voyeurista da morte alheia), a violência se torna metonímica: há mais elementos escondidos do que revelados ao espectador. Na sequência das abelhas, no terço final, e nas vinhetas em animação de sombras (novo aceno à ludicidade infantil para retratar o perigoso mundo dos adultos), o projeto comprova o notável cuidado estético, perceptível inclusive na iluminação das peles negras.

Infelizmente, tamanha preocupação com aspectos sociais e estéticos se traduz no desprezo pela mitologia do personagem, relegada a um elemento secundário. Por que é preciso chamar Candyman cinco vezes? Qual a explicação específica para as balas, e por que um sujeito escapa da fenda na parede? Como explicar o desprezo do artista pela deterioração veloz de sua pele, e a ignorância da namorada quanto a este fator? O fato de escolher pessoas brancas como vítimas privilegiadas diz respeito à arrogância dos brancos, que se estimam invencíveis e invocam a criatura com maior frequência? Seria uma escolha deliberada, apesar de, num flashback, presenciarmos a morte de crianças negras? Como a seleção dos alvos evoluiu? De que maneira se orquestra a “colmeia" de figuras transformadas em assassinos perigosos? O que dizer da inesperada capacidade de voo e transmutação? Por um lado, o filme ignora estas explicações, visto que a obra de 1992 deveria bastar como introdução ao personagem. Por outro lado, efetua diversos retornos ao passado, na provável tentativa de bastar enquanto obra autônoma e estabelecer a história de origem do vilão. Seu modus operandi é incerto, algo que se reflete na função ambígua de William Burke (Colman Domingo) na trama.

No final, a atmosfera se sobressai à confusa narrativa. O roteiro prepara o espectador à relação tumultuosa entre Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen II) e sua mãe (Vanessa Williams), ao dilema ético entre emprego e vida afetiva para a namorada Brianna (Teyonah Parris), e à investigação criminal apontando o pintor como principal culpado pelas mortes. Ora, nada disso se concretiza de fato. A transformação do protagonista ocorre de modo acelerado demais, numa história que se espreme em inexplicáveis 90 minutos. Pela indefinição entre a violência exteriorizada e internalizada, entre o monstruoso e o psicológico, o elenco possui uma prestação apenas correta: nenhum ator ganha a possibilidade de se confrontar de fato ao vilão, demonstrando hesitação, combatividade, planos alternativos para evitar o desfecho anunciado. Anthony se encaminha mecanicamente à conclusão que lhe é prometida desde o início; Brianna sofre poucas alterações; a confissão da mãe soa fácil e a presença do casal gay cumpre o papel incômodo de aceno à representatividade - a dupla formada por Nathan e Kyle possui função nula, limitando-se a dar a réplica aos protagonistas. Quando o filme se encerra, numa sequência potente e muito bem filmada, ele parecia apenas começar.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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