Crítica
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Sinopse
Brasília é fruto de uma utopia “cosmofuturista” bastante típica dos anos 1960. Uma investigação da gênese dessa cidade que surgiu do zero.
Crítica
Uma Máquina para Habitar é um curioso filme-ensaio sobre Brasília, cujo fluxo narrativo é sustentado por um processo de contínua mistificação. As várias vozes dos narradores conferem ao longa um traço de messianismo. O texto, carregado de conceitos entre o esotérico e o prático, surge como possibilidade condutora, embora a tônica melhor desenvolvida nos primeiros dois terços da produção seja a proposição instigante sobre a arquitetura da capital federal. Os diretores Yoni Goldstein e Meredith Zielke constroem um olhar acurado a respeito dos detalhes do espaço imaginado para ser central ao poder do Brasil. Eles exploram curvas, semicírculos, geometrias e fachadas como se estivessem escrutinando uma paisagem relativa ao âmbito da ficção científica. Ao transitar por diversos lugares dessa cidade pré-concebida, repleta de idiossincrasias e insuspeitamente atravessada por uma mitologia de contornos sincréticos, reforçam um mistério passível de escapar à vista dos espectadores apressados. Alguém chega a dizer que ”é preciso saber ver para enxergar".
A evocação do enigmático é o que de melhor Uma Máquina para Habitar apresenta como experiência cinematográfica. Os realizadores são hábeis no entrelaçamento de dinâmicas e conjunturas distintas nesse itinerário, às vezes desgastante, de expor os meandros da cidade incrustada no Cerrado. Ao deixar um pouco de lado a narração profética – esta com sobreposições de timbres a fim de amplificar o ocultismo –, o filme transita de modo menos afetado pelas descobertas que gradativamente se tornam evidências de singularidade. Yoni Goldstein e Meredith Zielke são bem-sucedidos quando conseguem, por meio do registro das perspectivas e associações puramente imagéticas, transformar a câmera num dispositivo de iluminação, capaz de gerar pequenas epifanias, como o vislumbre dos trabalhadores semelhantes a cosmonautas transitando em terreno lunar. Aliás, essa relação com o espaço sideral (o científico, não o equivalente cabalístico) é responsável pelos principais momentos do documentário bastante incomum, ora interessante, ora cansativo.
Ao demarcar paralelos, coincidentemente à medida que envereda pelo misticismo mágico, Uma Máquina para Habitar empalidece. Até ali, Yoni Goldstein e Meredith Zielke convidam o espectador a escarafunchar o insondável, fornecendo prismas à correlação dos signos e sentidos. Desse ponto em diante, a dimensão impalpável se insinua como foco principal, assim invertendo os polos da apuração, a tornando estranhamente especulativa. Há um tônus de conspiração contido na forma como os cineastas se embrenham na obscura ação da maçonaria – estabelecendo, por exemplo, equivalência entre o chamado Grande Arquiteto (entidade maçom) e o falecido Oscar Niemeyer – e numa comunidade de devotos nos arredores de Brasília. O dado mitológico perde seu elo com a concretude das simetrias e harmonias e se rende ao etéreo, como se houvesse a constatação de que a cidade é um centro gravitacional, ideal a fenômenos inexplicáveis quase por vocação. Mesmo ainda hábil ao costurar engrenagens diferentes num propósito consistente, o filme perde força.
Em seus 85 minutos, Uma Máquina para Habitar faz uma radiografia peculiar de Brasília, mesclando leituras formais, entendimentos metafísicos e conjecturas de várias ordens. Nessa mistura, corria o seríssimo risco de ser dispersivo, reiterativo ou essencialmente caótico, o que felizmente não é. Quando abruptamente entra em cena o motoqueiro teorizando a cidade e depois discutindo com alguém numa ocasião festiva, esse dado humano poderia ser lido como aleatório, não fosse a capacidade de Yoni Goldstein e Meredith Zielke de integrar os vários vieses dentro da proposta ousada, sobretudo porque abundantemente demarcada pela heterogeneidade. Porém, essa aptidão para fazer elementos de fontes díspares tocarem em consonância para atingir um objetivo claramente exposto não salva o resultado dos efeitos de ruídos mal sintonizados. Observar Brasília como um projeto simultaneamente material e imaterial é um esforço e tanto, mas o longa se perde exatamente por deslumbrar-se com o esoterismo e abrandar a visão dos mistérios relativos ao tangível.
Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.
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