Sinopse
Crítica
Se produzido nos anos 1980/90, é provável que esse filme se chamasse O Pai e tivesse um astro masculino de ação como sujeito tentando compensar a ausência paterna ao ensinar ao filho um pouco de seu ofício. Algo do tipo Falcão: O Campeão dos Campeões (1987), talvez com Sylvester Stallone, mas trocando a queda de braço por técnicas de sobrevivência. Especialmente em virtude da contínua demanda por diversidade no cinema (ainda bem), vários papeis antes consagrados fundamentalmente aos homens, na atualidade, estão sendo pensados dentro de uma adaptação à ótica feminina. Mas, será que basta ter uma protagonista mulher para essa mudança ser efetiva do ponto de vista da variedade de representação? Em A Mãe, a figura central é interpretada por Jennifer Lopez (nunca nominada). Ela é ex-militar, envolvida com traficantes de armas e se torna alvo de seus antigos parceiros de negócios (e amantes). No começo do longa-metragem dirigido por Niki Caro, sobrevive por pouco à investida de um desses malfeitores, o vilão capaz de esfaquear a barriga de uma grávida – o gesto hediondo sinaliza a medida da maldade. A fim de proteger a filha, ela se afasta da menina, permitindo que o FBI a entregue à adoção e monitore a sua segurança. Porém, como convém a esse tipo de jornada em que a vingança é um elemento motivador, chega o momento em que a Mãe precisa retornar.
O fato de não haver uma hipersexualização da Mãe já é um (bom) ponto fora da curva. Apenas em uma cena a câmera da diretora enfatiza a beleza das curvas de Jennifer Lopez, atriz e cantora tida por muitos como símbolo sexual. Mas, para fugir (ainda bem) dessa observação do corpo feminino essencialmente como um espelho do tesão masculino, Niki acaba excluindo todo e qualquer aspecto de desejo. Tanto que quando a protagonista cura as feridas do agente do FBI, era para ser um momento marcado por certa tensão sexual, mas isso acaba não acontecendo. Será uma demonstração prática daquilo que alguns teóricos têm destacado, a reboque da eliminação gradativa da sexualidade nos candidatos a blockbusters norte-americanos, de que o medo de estereotipar sexualmente as mulheres resulta na interdição do sexo como componente dramático? Pelo sim e pelo não, fato é que coisas triviais como amor e querer são mais citadas do que necessariamente demonstradas. Em tese, a Mãe tem um passado com os bandidos vividos por Joseph Fiennes e Gael García Bernal, mas nada que seja “palpável” quando os reencontros com os ex-amantes acontecem. Então, o que temos é uma simples e apressada jornada de reconhecimento entre mãe e filha obrigadas a viver afastadas uma da outra. E essa reconexão é aparentemente intermediada por uma tragédia compartilhada. Só aparentemente.
O verdadeiro mote de A Mãe mora nos diálogos ríspidos entre mãe e filha. Mas, antes de citar isso, é preciso dizer que a Mãe de Jennifer Lopez é caracterizada como heroína típica. O passado errático como colaboradora de mercadores de armas é bastante relevado (no popular, ganha uma passada de pano) em virtude da capacidade inabalável dela de doar-se por alguém. É uma das principais virtudes do herói (ou da heroína) essa disposição pela renúncia, ou seja, por deixar para trás as próprias demandas e vontades se isso beneficiar alguém e/ou um grupo. Neste caso, a protagonista aceita sofrer desde o começo se isso significar a salvaguarda da filha e, durante o desenvolvimento até o clímax, ela vai reforçar constantemente essa sua disponibilidade sacrificial. Claro, se isso garantir que a menina esteja livre dos bichos-papões. Aliás, a hipocrisia dessa mulher é um dado nada problematizado pela trama. Quer dizer que ela, por medo de uma rotina enfadonha depois do serviço militar, aceitou contrabandear armas mundo afora, mas mudou drasticamente de opinião ao abrir um contêiner e se deparar com tráfico humano? Em nenhum momento o filme coloca em xeque essa conscientização que nunca levou em consideração o impacto nocivo de sua atividade como vendedora ilegal de artigos bélicos. No entanto, faz parte do arquétipo o arrependimento, sendo o sacrifício um ato vital da contrição.
Retomando a análise sobre o mote de A Mãe. Enquanto se esconde dos bandidos (e ambos são destituídos de qualquer personalidade e relevância, senão como barreiras), Mãe e filha (interpretada por Lucy Paez) têm tempo suficiente no seu isolamento para construir uma relação. A apática personagem de Jennifer Lopez transmite conhecimentos de assassina à menina de 12 anos. Então, temos cenas de prática de tiro ao alvo até que Zoe se torne boa nisso, entre outras atividades. Por mais que a intenção seja transmitir uma ideia de talento hereditário (Zoe é tão hábil quanto a mãe), no fim das contas a adulta ensina a criança sobre a necessidade de saber manejar armas para “se virar”. E esse recorte ideológico condenável é reforçado pelo fato de que a Mãe sempre está correta, mesmo diante dos protestos de uma menina com leves inclinações pacifistas. Quando Zoe reclama da lógica da caça, sua mãe afirma “tudo o que você come é produto de violência”, invalidando a interlocutora com “experiências de vida”. E, para reforçar essa resignação conveniente diante de uma “naturalidade da violência”, há a dinâmica com a loba e os filhotes. Os bandidos as encontram porque Zoe teima em fornecer comida aos lobinhos. Ainda que a protagonista alimente sua equivalente lupina (única concessão à filha), quando ela própria está ferida a loba confirma a lógica de “não interferir na natureza”. Portanto, por trás do elogio à mãe-coragem num filme escapista há a validação da violência como natural.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 3 |
Francisco Carbone | 5 |
Alysson Oliveira | 3 |
Leonardo Ribeiro | 4 |
MÉDIA | 3.8 |
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